segunda-feira, 25 de maio de 2009

Os Biodanzantes na Egitânea



Num destes dias, a muito querida “manada biodanzante” encaminhou-se para a zona raiana e, como base de apoio para as suas investidas de vivências de vitalidade, criatividade, sexualidade, afectividade e transcendência, usou a pousada de juventude localizada em terras de Idanha.
Os “biodanzantes”são normalmente guiados por um ser fabuloso, mas desta vez este fabuloso e lindo ser delegou a “condução da manada” a um guia que se auto-intitula “o pastor”.
Como é habitual, a “incrível manada” não falha nos horários, e de manhã todos os seus elementos são muito pontuais a tomar o pequeno-almoço e a reagrupar-se para sair em busca de novos pastos de felicidade.
A barragem Marechal Carmona foi o ponto de partida para uma caminhada de 17 km. No princípio, os “biodanzantes” mostravam-se renitentes quanto à distância, mas valentões como são, nunca se negam a um bom desafio! Nem que tenham de mergulhar no desconhecido e enfrentar o “bicho pelos cornos”.
Inicialmente muito enérgica, a irreverente “manada”, pouco a pouco, com o caminhar e consequente cansaço, começou a vergar sob o peso da rotina e da mecânica impostas pelo estilo de vida alienante que a sociedade nos impõe no dia-a-dia. Devagar, o pisar assertivo com toda a planta do pé vai ligando o “biodanzante” à Terra, que já não identifica o ser que criou para colorir a sua vida. Mas a linda “manada” volta a fazer essa ligação e a Terra ama esse pequeno gesto. Porém, um pequeno “rebuçado” não é suficiente; ela sente-se muito cansada, mesmo muito cansada. Torna-se necessário que todo o “gado tresmalhado” volte a reunir-se para reflectir, mas acima de tudo que aja, pois de reflexões e palavras bonitas está a Terra farta.
No grupo existia um pequeno “bezerinho” maravilhoso, que apesar da sua irreverência e dos caprichos próprios da idade, deu o exemplo de como contemplar as pequenas e belas coisas que a Mãe natureza nos dá, como um carreiro de formigas, que vivem a vida como se do último dia se tratasse Já os adultos, muito seguros e encastrados nas suas cercas e currais, desaprenderam essa capacidade de apreciar as coisas simples da vida. No entanto, os “biodanzantes”, ao caminharem todas as semanas, reaprendem a simplicidade da vida e vivem-na em toda a sua plenitude. Ao dançar a vida, estimulam o modo de viver em toda a sua grandeza.
Nas antigas terras da Egitânia, como se de uma regressão se tratasse, “os biodanzantes” redescobrem o seu passado e as batalhas que lá se travaram. Por terem sido muito duras, deixaram muitas marcas e moldaram, e de que maneira, o quotidiano de cada membro da “manada”. Mas estas guerras e fogos não se extinguem de um dia para o outro; e também não vale a pena fugir deles, pois acabam por eclodir a qualquer momento, como se de um vulcão adormecido se tratasse. A querida “manada biodanzante”, bem encaminhada e ciente da situação, combate sem tréguas essas guerras e essas ardências. Mas não se devem extinguir todos os fogos, alguns devem ser mantidos em lume brando, pois iluminam e aquecem a alma do Ser. São como um forno a cozer bolos benzidos e acarinhados por uma velha senhora de face marcada por rugas profundas, fruto da dureza da vida que, no entanto, não conseguem esconder o inesgotável sorriso, amplo e sincero.
Os “biodanzantes” voltam aos verdes prados. Desta vez, cada um caminha ao seu ritmo, aprendendo a escutar o corpo, que vai manifestando o seu desagrado pelos excessos cometidos pela cabeça pensante, que muitas vezes se desliga e ignora o resto do corpo. Mas esta dissociação é impossível, a cabeça e o resto do corpo são um só, e os “biodanzantes” têm aprendido a fazer essa conexão.
A dada altura, perto da albufeira, a corajosa “manada” dá de caras com uma outra manada (esta bem a sério!). Apesar de espécies diferentes, não houve necessidade de confronto, pois estávamos providos de bom “pasto de sabedoria” para nos saciar. Com o tempo, os “biodanzantes” aprendem a gerir os conflitos, evitando-os quase sempre; contudo, se necessário, não têm qualquer problema em enfrentá-los com toda a potência, mas sem raiva, pois esta disturba e ilude a clareza dos sentidos.
Ao fim de muitos quilómetros, o merecido descanso junto à albufeira. Os “biodanzantes” são muito abertos a novas experiências e como tal aventuram-se numa nova linguagem de nome “borreguês”. As infrutíferas tentativas não baixam o seu astral; pelo contrário, seguros de si, não se desiludem com o fracasso.
Alguns corajosos aventuraram-se nas águas surpreendentemente mornas, mas um pouco ricas em hidratos. Por vezes estes banhos são como regressar às origens, porque viemos da água e desfazemo-nos na água.
Mas nem só de vivências e de algumas coisas mais platónicas vive o grupo, também tem de se nutrir e bem, de preferência com deliciosa comida. (E de facto estava mesmo uma delícia, quase que os meus “enjaulados” dentes apodreciam com tantos sabores.)
Para além do “pastor” que conduziu a sua querida “manada” pelo planalto raiano, sorrateiramente, o poeta “caipira” começou a se evidenciar. São Pedro, talvez por ciúmes, ao ver tão grande declamador não gostou e praguejou-o com relâmpagos e fortes bátegas de água. Mas o poeta, persistente, não deixou de declamar, e nem os seus seguidores o deixaram de escutar, venerando-o pelas sábias e poéticas palavras. O todo-poderoso, ao ver tal devoção e firmeza, ordenou a São Pedro que desse tréguas aos “biodanzantes”, e estes continuaram a sua tertúlia de aclamações à vida.
O grupo “biodanzante” voltou a sair ordeiramente. Deixando para trás a Egitânia, seguiu em direcção ao Calhau, que é como um farol de toda a zona raiana, pois onde quer que se esteja, é sempre visível. Os “biodanzantes” não se guiam por um farol, mas sim por muitos faróis, pois cada indivíduo é um farol, com uma pequena luz que ilumina uma parte do caminho de outra criatura. Por isso não se pode estar só restringido a um “farolzinho”, quantos mais melhor, mais irradiação se tem para o percurso de vida, iluminando o destino do Ser.
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A “manada” não é um grupo restrito, antes pelo contrário, recebe de braços abertos novos elementos, e foi o que aconteceu. Os “biodanzantes” cresceram naquele dia com novas almas, que trouxeram mais brilho ao Calhau, fazendo-o irradiar ainda com mais intensidade toda a sua beleza.
A caminhada prossegue entre pedrinhas, pedras, pedregulhos e calhaus, percorridos em tempos pelos paleolíticos, romanos, visigodos, árabes e por um D. Afonso Henriques que, depois de conquistar as terras de Monsanto aos mouros, as doou aos Templários para que eles as defendessem dos agressores. Os novos invasores, pelo contrário, são muito pacíficos, incentivam o diálogo e o afecto, para que nenhuma quezília fique por resolver.
Apesar da “manada” se ter tresmalhado por momentos, como um íman, depressa se voltou a reagrupar. Nem os pólos que exercem forças muito opostas conseguiram afastar a assertividade dos “biodanzantes”, como se estes estivessem sempre na linha do equador. Mas, por vezes, têm alguns desvarios, e torna-se necessário fazer uma incursão aos trópicos, onde o calor é muito forte e nos faz sentir mais vivos, acalentando a alma e o coração, por vezes arrefecidos.
Os mais jovens não dão tréguas, fazendo regredir os adultos ao seu nível, pois só desta forma é possível a compreensão de mentes tão claras e autênticas, que, por serem tão inocentes, contagiam e fazem os adultos desejar ser outra vez pequenos, para brincar aquilo que não puderam ou para recordar as delícias de uma infância passada.
Entre os enormes xistos, azinheiras e sobreiros sobressai uma ermida perdida no tempo, a ermida de São Pedro Vir-à-Corsa. Diz a lenda que este lugar havia sido escolhido por um eremita, de seu nome Amador, para se refugiar do mundo. Este monge, que há muito vivia na gruta, encontrou um dia um recém-nascido abandonado. Sem poder dar de comer à criança, Amador suplicou o auxílio de Deus. Surgiu então uma corça que amamentou a criança até ela poder alimentar-se de frutos e ervas, a dieta seguida pelo eremita. Segundo a crença popular, esta acção do eremita Amador terá ajudado a salvar a criança das garras do Demónio.
Os deuses e os demónios, neste caso, eram os “biodanzantes, que contemplavam toda a natureza envolvente em harmonia, absorvendo o som do vento a projectar-se nas árvores, o chilrear dos pássaros e os aromas imanados pelas plantas, para atraírem os insectos de forma a levarem o pólen e as sementes para outras paragens.
A fluidez dos “biodanzantes” era notória, restabeleciam a energia gasta pelas condições anti-sociais e culturais ao longo da sua vida. Este restabelecimento potenciou as condições necessárias à nutrição, expansão e conservação do Ser e do planeta.
Surgiram alguns adivinhos. Sim, adivinhos, bruxos, feiticeiros, magos, encantadores, curandeiros, macumbeiros… que tentavam descortinar aquilo que não era descortinável – o futuro.
Como se fosse uma procissão, a “manada biodanzante” seguiu em busca de umas ditas sopas. As sopas, nem vê-las, mas em compensação os biodanzantes degustaram alguns petiscos e bebidas típicos de Proença-a-Velha. Gostoso, foi ver e ouvir os adufes tocados pelas beirãs vestidas a rigor, dando continuidade à tradição de um instrumento secular.
Os “biodanzantes” gostam muito de voltar às suas origens. Ficam curiosos por saberem as histórias que estão por detrás de cada elemento do grupo. Neste caso, esse elemento é um ser fabuloso, que abre os braços e acolhe no seio do seu berço o resto do grupo, mostrando-lhe as suas origens e partilhando as suas memórias. A receptiva “manada” fica sempre muito feliz com a dádiva de um quinhão da vida de um dos seus elementos.
Os biodanzantes despediram-se como sempre de uma forma afectuosa, prometendo reagrupar-se dentro de dias para novas aventuras e vivências.

Esta “espécie” de crónica é dedicada ao querido grupo da Biodanza, que muito me tem ajudado a viver a vida, dançando-a.
Bem que posso dizer: A vida gera vida dentro da vida. Por isso, vivam a vida.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Arrifana - Sagres. As etapas "rainhas"

(clicar nas fotos para ampliar) (o menu do blog encontra-se no fim)
A praia da Arrifana foi o ponto de encontro para darmos início aos últimos três dias de travessia na mais bela costa do mundo - pelo menos esta é a minha opinião.
Apesar de ser cedo, a água já estava repleta de surfistas desejosos de apanhar as primeiras ondas do dia. E nós estávamos ávidos do “trepa-destrepa” das falésias. Ao contrário da última etapa, em que o mar estava super-agitado devido à forte nortada, desta vez estava calmo e sereno, com ondas perfeitas para os surfistas.
Atravessamos a praia da Arrifana e atacamos de imediato a primeira subida, a um ritmo bastante acelerado. As vistas, as flores, os cheiros e a temperatura no alto da falésia são um bom presságio para o que se antevê para a frente. Depois dessa primeira subida, temos de rodar um pouco para o interior, para, de seguida, começarmos a descer por um caminho ladeado de estevas em flor, em direcção à praia do Penedo. Mas antes de lá chegarmos, admiramos aquele que será talvez o melhor cenário de toda a Costa Vicentina. A Sul, consegue-se ver toda a costa, retalhada pelo mar e vislumbrando-se, aqui e ali, alguns areais. A Norte, um esporão enorme emerge do meio do mar, como se um rinoceronte ali estivesse a fazer mergulho e deixa-se apenas ver o seu chifre. A Ponta da Agulha é uma formação rochosa com a forma de esporão, que resistiu às investidas incessantes do mar, ficando isolada da terra. Na Irlanda existe uma formação rochosa muito semelhante, são as chamadas falésias de Cliffs of Moher. A diferença é que, enquanto na Irlanda se paga para ver essa paisagem e os portugueses até lá vão vê-la (eu fui um deles), na Costa Vicentina pouca gente repara nesta esplêndida formação rochosa de tom ocre e cinza. A questão que aqui coloco não é a da comparação da beleza dos dois locais, mas sim a indiferença que os portugueses por vezes demonstram perante as belezas naturais do seu próprio país. É o típico negativismo português, que leva a dizer que não temos nada que preste e que o que é lá de fora é sempre melhor...
A praia do Penedo não podia ter um nome mais apropriado dado os enormes seixos negros redondos e polidos pela água que, molhados, brilhavam intensamente com os raios de sol.
Seguimos pelo meio dos seixos e de algumas formações rochosas cheias de algas, até entrarmos na praia de Vale Figueira, com o seu enorme areal. Percorremos toda a extensão de areia até que, à nossa frente, surge uma “parede” enorme.
– Onde está o trilho? – Foi a primeira pergunta que toda a gente fez.
Comecei a trepar pelos calhaus soltos e meti-me por uma garganta escondida, onde corre um pequeno fio de água. Um a um, os outros começaram também a subir e a entrar no estreito desfiladeiro. Este era de tal forma esbarradio, que até o pequeno Buda, apesar de ter tracção às quatro patas, derrapava e gania de aflição. Mas o cão não estava mais aflito que aqueles caminhantes que sofriam de vertigens. Quando saímos do espectacular canyon, começou o “frenesim” do sobe e desce.
Para mim a hora do almoço é sinónimo de grande alívio, não por saciar a minha fome, mas por poder despejar a pesada mochila repleta de comida. Como de costume, e para delícia dos 14 caminhantes, a Caminhos da Natureza esmerou-se, e de que maneira, nos petiscos. Mas não há muito tempo para que o estômago deguste a saborosa comida, depressa voltamos ao “trepa-destrepa”, num rendilhado de falésias espectaculares, com o mar agitado a dar ainda maior ênfase.
Sob um sol bastante forte e pelo meio de rosmaninhos, estevas, alecrins e tojos em flor chegamos a uma falésia com vistas soberbas sobre a enorme praia da Bordeira. Com o fim da etapa à vista, uma parte do grupo descontraiu e desfrutou do maravilhoso areal e das bonitas formações rochosas nas falésias. Os outros, como se tratasse de uma maratona, não abrandaram o ritmo e continuaram a caminhar muito depressa. O resto do dia foi passado entre algumas esplanadas na praia da Bordeira e a pitoresca aldeia da Carrapateira, onde se destaca a velha igreja envolvida por uma muralha erguida em 1673, para defesa contra os corsários marroquinos. À noite, para festejarmos o aniversário de uma das caminhantes, deliciámo-nos com os manjares de um restaurante típico da Carrapateira. Eu comi uma deliciosa massada de peixe, para regalo do meu palato.
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A maior etapa de toda a travessia da Costa Vicentina prometia vir a ser quente, o vento que soprava de Leste não enganava. No início seguimos por um trilho de areia junto à ribeira da Carrapateita, até voltarmos a caminhar sempre junto à costa. Entre a praia da Carrapateira e a praia do Amado, a progressão é muito rápida e sem dificuldades. As falésias são muito instáveis e estão constantemente a desmoronar. Numa pequena reentrância abrigada, na frágil falésia, surge um miniporto de pesca improvisado. É uma imagem um pouco surreal, que me fez lembrar alguns locais piscatórios em Cabo Verde, onde os pequenos barcos são pendurados nas falésias, seguros apenas por toscas estruturas de madeira, que nas marés altas ficam quase submersas.
“São mais que as mães”, é o primeiro pensamento que se tem quando se chega à “Meca” do surf, a praia do Amado. O mar estava repleto de surfistas, ávidos de apanhar todas as ondas.
Atravessamos a praia e subimos um areal, depois seguimos pelo meio de mato, até ao monte do Engenheiro, onde existe uma daquelas casas que é o sonho de qualquer um, não pela casa em si, mas pelo local privilegiado, com vistas fabulosas sobre toda a costa e o Atlântico.
Voltamos a descer para uma pequena praia para, de seguida, atacarmos uma subida de dificuldade bastante elevada, imprópria para cardíacos, mas que todos, com maior ou menor dificuldade, conseguiram superar. Mais uma vez as vistas são soberbas, as plantas libertam uma quantidade de aromas enorme que, fundidos, dão origem a uma fragrância única e maravilhosa. A Primavera encontrava-se no seu expoente máximo.
Mas não há tempo para descansar, temos de descer, para logo voltar a subir bem alto e de novo voltar a descer, para as isoladas praias da Murração e Carneiro, encaixadas em vales de rara beleza. Como estava bastante calor, não resisti e dei um mergulho nas águas geladas. Soube-me tão bem!
Nessa altura já tínhamos a companhia de duas simpáticas holandesas que andavam a fazer a travessia em autonomia, há diversos dias. Como andavam um pouco perdidas, devido a um mapa com pouca precisão e à dificuldade em encontrar os trilhos correctos, convidei-as a juntarem-se ao grupo.
De volta ao caminho, continuamos o “trepa-destrepa”, até chegarmos a um trilho muito exposto na falésia. Feito por pescadores, é daqueles de ficar sem respiração. Todo o cuidado é pouco, e tem de se pôr um pé de cada vez, pois é impossível colocar os dois pés juntos. Se viesse uma pessoa de frente, seria praticamente impossível cruzar por ela. Fez-me lembrar um pouco quando se anda na crista do gelo ou na neve, e tem de se fazer contrapeso com a outra pessoa para se poder cruzar.
Passadas as emoções, fomos um pouco para o interior. Devido à ausência de trilhos junto à falésia, seguimos por um estradão. O facto de o caminho estar ladeado de estevas em flor, tornava-o até agradável.
Descemos para a enorme praia com cerca de três quilómetros. Apesar de o areal ser o mesmo, são três praias distintas: Barriga, Cordama e Castelejo.
Bem que se pode dizer: isto é que é vida! Dar uns mergulhos, apanhar banhos de sol e comer os petiscos gourmet preparados pela Caminhos da Natureza.
Depois de “jiboiar”, devagar, devagarinho, continuámos a caminhar pela praia. De seguida – e para surpresa de algumas pessoas que estavam sentadas numa esplanada de olhos esbugalhados, a pensar o que é aqueles malucos andam por ali a fazer em vez de estarem a curtir o “solzinho” e a beber uma cerveja na esplanada – atacámos uma encosta muito inclinada. Uma das holandesas nem queria acreditar, só dizia: «What! This is the way?»
A paisagem muda radicalmente. Deixamos as falésias e entramos num fabuloso bosque de pinheiros-anão, atravessado pela ribeira do Marinho; segue-se uma zona de pasto, onde as vacas se deliciavam com a erva muito verde.
Uma das holandesas estava vermelha que nem um pimentão e aparentava estar muito cansada, perguntei-lhe se se sentia bem, ao que ela me respondeu: «Do not worry, I´m like a diesel engine. I walk slowly, but I can handle a long time.»
O comentário dela tinha toda a razão de ser. Ao caminharmos, temos de encontrar o nosso próprio ritmo e nunca imprimir um andamento que não consigamos acompanhar. Tal como na vida, há que encontrar o ritmo certo.
Descemos os prados ondulantes ao sabor do vento e chegamos a Vila do Bispo para o merecido descanso. Tinha ficado para trás a mais longa e espectacular etapa de toda a travessia.
Antiga terra de bravos e corajosos navegadores, pareceu-me um pouco triste e abandonada; os moinhos de vento sem as velas são sinónimo disso. No entanto, a gastronomia local é muito rica e há uma variedade de restaurantes muito grande. Mas não é só pela comida que estes se diferenciam. Um deles tornou-se conhecido pelo mau humor da dona e pelo péssimo atendimento, mas consta que a comida é divinal. Outro é conhecido por ser um slow food, mas para além de ser slow de mais, tem também um péssimo atendimento – e eu e alguns amigos já o sentimos na “pele”.
Desta vez acabamos por jantar num pequeno e simpático restaurante; mas pequeno só o espaço, doses de comida eram enormes. A sopa de peixe fez a delícia de todos.
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Começamos a caminhar bem cedo. O vento moderado de Leste empurrava-nos de volta para as falésias. Os primeiros quilómetros, até perto da Torre da Aspa, são feitos por estradões. A antiga torre foi construída como ponto de vigia e fica na zona mais alta de toda a Costa Vicentina. As poucas árvores existentes junto ao caminho, devido ao forte vento que as fustiga incessantemente, sem tréguas, têm formas singulares.
Caminhamos até que o imenso planalto dá lugar a abruptas falésias.
A juntar ao forte aroma e colorido das estevas, apareceram milhares de mariposas, talvez um pouco desorientadas devido ao forte vento vindo de terra.
Os tons avermelhados e amarelados das falésias são fabulosos, e justificam e bem o nome praia da Ponta Ruiva. Apesar do pouco desnível, o piso é muito irregular. O “caos” de pequenos blocos de calcário massacrava, e de que maneira, os tornozelos. Um bom calçado torna-se necessário para precaver lesões. Por vezes, parecia que o Cabo de São Vicente estava perto, mas não passava de uma ilusão, ainda tivemos de caminhar um bom bocado.
Finalmente tínhamos chegado ao “fim do mundo”, como era apelidada a extremidade mais a Sudoeste da Europa continental. De facto a terra acaba mesmo e a imensidão do mar não deixa de ser impressionante. Os romanos chamaram ao local lugum cineticum, o lugar onde o sol era cem vezes maior, fazendo ferver o mar.
Tal como o infante D. Henrique, que aguardava pelas naus e festejava quando chegavam com novidades das novas terras, nós brindámos com champanhe a nossa chegada ao cabo após nove etapas por aquela que é a mais bela costa do planeta Terra.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Volta Selvagem

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É disto é que eu gosto. Andar três dias com os chinelos presos ao quadro da bicla e uma mochila de 20l com a água, umas barras de cereais, a escova de dentes e uma pequena muda de roupa para a noite. De resto, é só pedalar e desbravar trilhos e caminhos desconhecidos.
O Tó baptizou esta volta como a Volta Selvagem, pois a maior parte do percurso é feito nas zonas mais inóspitas e inabitáveis de Portugal, que felizmente ainda existem.
Deixámos o carro em Monforte da Beira e fizemos aquilo que o GPS nos mandava fazer, seguir por um caminho pelo meio do montado de azinheiras e carvalhos. Os primeiros quilómetros são muito rápidos. Sempre em talega, palmilhamos efusivamente os bonitos caminhos com muito bom piso, até chegarmos à ribeira do Aravil, onde três espectadores atentos nos observavam, à espera que déssemos alguma queda ao atravessar a ribeira. Apesar de os termos decepcionado, os homens não deixam de nos incentivar ao ver-nos a superar tamanha subida depois da ribeira.
Depois de passarmos pela minúscula aldeia de Cegonhas, subimos para um planalto de onde voltamos a ter vistas soberbas. Ao passarmos perto do Rosmaninhal, vimos um trilho encaixado no vale e, como não conseguimos resistir, desobedecemos às indicações do GPS e metemo-nos por ele. Descemos até bem perto do Tejo, junto ao Monte Barata, onde a Quercus tem umas pequenas casas de apoio ao Parque Natural do Tejo Internacional, e inclusive tem um espaço com cerca de 25 camas e uma cozinha. O local é muito agradável para passar uns dias de férias a caminhar e a observar veados, javalis e as muitas aves existentes no parque.
Voltamos a apanhar o belo e selvagem trilho, que a certa altura se torna bastante técnico, fazendo com que o Tó continuasse a saga do Super-Homem, ao tentar fazer um voo rasante sobre umas pedras aguçadas. Felizmente a frustrada imitação limitou-se a umas pequenas escoriações.
A aldeia do Rosmaninhal não podia ter um nome mais adequando. As extensas áreas de rosmaninho em flor, para além dos deliciosos aromas, proporcionam um cenário muito bonito. Não passamos pela aldeia e continuamos num constante sobe e desce, quase sempre por entre velhos carvalhos e azinheiras.
O montado dá lugar a extensas áreas de estevas em flor, que libertam o típico odor que se entra na nossa roupa. As estevas continuam por áreas intermináveis, acompanhando-nos no sobe e desce, até que descemos para o vale do rio Erges. Apesar de não o atravessarmos – o que é impossível devido à forte corrente –, tivemos de rastejar para atravessar uma vedação e logo de seguida passar uma ribeira. A carta militar dizia que havia um caminho, mas este não passava de uma utopia. Assim, tivemos de improvisar um caminho para sair do vale. Encontramos um trilho feito por javalis e, que nem uns “javalis”, lá fomos furando as estevas que, ao se prenderem nas bicicletas, dificultavam a progressão. Felizmente eu tinha perneiras, que me protegiam das arranhadelas das urzes; mas o Tó não tinha, e não tardou muito a ter as pernas quase em chagas. Afinal de contas estávamos na Páscoa, portanto, as chagas do Tó até estavam enquadradas no espírito da época.
Ao fim de meia hora começou a aparecer um trilho e começámos a pedalar, mas por pouco tempo. Um cavaco mais afiado espetou-se no pneu e este vasou, e como o líquido do tubless não conseguia tapar tamanho buraco, tive de meter uma câmara-de-ar.
Finalmente a pedalar. Voltamos a entrar numa zona bastante frisada, mas um pouco feia devido aos eucaliptais. De seguida, apanhamos uma estrada muito secundária e, empurrados pelo forte vento de Noroeste, chegamos num ápice a uma calçada romana que nos levaria até à bonita vila de Segura. Apesar de ser bastante bonita, por vezes as casas “típicas” dos emigrantes destoam. Estes vêm “iluminados” das novas terras de adopção e metem-se a construir casas gigantescas com arquitecturas bastante desenquadradas e feias, na minha opinião. É natural que os emigrantes queiram evidenciar o seu sucesso, pois a vida foi-lhes muito difícil, mas penso que as autarquias podiam colocar um pouco de bom senso nessas pessoas, ou pelo menos fazerem um plano urbanístico mais adequado e mais real, para preservar a bonita arquitectura raiana.
A saída de Segura é feita por um bonito caminho ladeado por muros de pedras, mas não tardou muito a ficarmos sem caminho. Ou eram as vedações, ou os caminhos que simplesmente deixavam de existir. Com o abandono dos campos é natural que os caminhos desapareçam ou fiquem em muito mau estado. Tivemos de voltar para o asfalto, para fazer mais uns quilómetros até Salva Terra do Extremo.
Para além dos dois ciclistas, um pouco insanos, passaram por Salva Terra do Extremo Romanos, Visigodos e Muçulmanos, até que no tempo de Afonso Henriques ficou estabelecida a actual fronteira. Para defender o território, este rei mandou erigir um castelo, que agora não passa de um vestígio, apenas perceptível numas pequenas ruínas, ao contrário do castelo de Zarza la Mayor, do outro lado do rio Erges. Pareceu-me que os espanhóis estiveram melhor, pelo menos no que diz respeito à resistência dos castelos. Quanto a nós, podemos ter perdido o castelo, mas temos penedos, castanheiros, carvalhos, azinheiras e trilhos muito mais bonitos. “Betetamos” em redor da vila por trilhos de pedra centenários. São fabulosos, mas exigem a aplicação da nossa massa muscular para superar as íngremes subidas. O caminho entre Salva Terra do Extremo e Termas de Monfortinho é uma “delícia”, voltamos a andar em talega a alta velocidade.
Bem que podíamos ser intitulados os betetistas vaqueiros. Durante um quilómetro, fomos fazendo de vaqueiros a uma manada de vacas estramalhadas que corriam desenfreadamente à nossa frente. Foi o delírio, felizmente elas não se viraram para nós e ao fim de algum tempo saltaram uma cerca e foram à sua vida.

O caminho voltou a desaparecer e tivemos de atravessar um enorme campo de pasto, com terreno muito esburacado, que massacrou, e de que maneira, os meus glúteos. O dia já ia muito comprido e as Termas ainda estavam um pouco longe. Andamos o mais que podemos até que optamos por ir para a estrada, pois já era de noite.
A senhora da residencial Pensão Familiar era muito simpática, serviu-nos uma terrina de sopa e umas postas de bacalhau assado com “meio metro de espessura”, muito bem guarnecido. Jantar, dormida e pequeno-almoço custaram só 30 euros, uma pechincha.
Estávamos bastante cansados, tínhamos saído de Lisboa às 6h30 e começado a pedalar em Monforte da Beira pelas 9h. A “betetada” tinha rendido cerca de 2800m de acumulado de subida e pedalados 105km de distância.

Deixamos as Termas de Monfortinho e metemo-nos por um caminho que acompanha por 20km o rio Erges. Este rio faz a fronteira entre Portugal e Espanha por muitos quilómetros, desde onde ele desagua no Tejo até mais a jusante, bem perto da Serra da Malcata. Penso que nasce na Serra da Gata, que é uma continuação da Serra da Malcata no lado Espanhol.
A paisagem que ladeia o rio é muito bonita, tanto do lado espanhol como do português. De vez em quando passam que nem “mísseis” veados assustados pela nossa presença. Desde a zona do Tejo que era frequente vermos veados fora das vedações dos coutos de caça. Uma grande parte do Tejo Internacional percorrida no dia anterior e toda a zona em redor das Termas de Monfortinho pertencem a um grupo bancário. Este grupo é daqueles que “choram”, pedem dinheiro ao Estado e “esfolam” os seus clientes, incluindo eu. São tão pobres que compram áreas enormes e vedam-nas com redes que mais me fazem lembrar um campo de concentração. Tudo isto para que os ricos possam divertir-se com a matança indiscriminada dos indefesos bichos. Sei que a caça está enraizada na cultura portuguesa e que é inevitável, eu próprio sou filho de caçador e como comida proveniente da mesma. Mas uma coisa é fazer uma matança só para satisfazer o ego dos caçadores, outra coisa é matar para o sustento, ou para fazer um petisco para o convívio com os amigos. Por outro lado, também admito que a criação de reservas veio trazer o repovoamento de muitas espécies que já escasseavam por doenças ou por terem sido caçadas até quase à extinção. Claro que o pretexto das reservas e de recuperar o número de animais se deve sobretudo a uma questão de euros, pois isto tudo resume-se à obtenção de lucro e não à essência principal do assunto, que é a preservação dos animais. Em conclusão, é estranho o amor que o homem tem pelos bichos, ao criá-los, mas, depois, mata-os sem hesitar, só por diversão.
Por algumas vezes, tivemos de transpor as cercas para continuarmos. Deixamos a bonita margem do rio e subimos para um planalto bastante árido, onde predomina o eucalipto, mas até este tem dificuldade em crescer num solo extremamente pobre. Deixamos o planalto e começamos a subir lentamente para a Serra da Malcata. O piso piora um pouco e torna-se bastante inclinado. Não imagino subir a serra em dias de calor, deve ser para “destilar”. Superada a primeira subida, o caminho segue num sobe e desce constante, ao longo da fronteira de Espanha. Como existe um caminho de cada lado da fronteira, por vezes, eu e o Tó pedalamos lado a lado, em países diferentes.
A Serra da Malacata é talvez o local mais isolado e selvagem de Portugal. Predomina o mato característico das montanhas e o pinheiro, que tem sido dizimado por um estranho vírus. A lagarta do pinheiro também é uma constante; por vezes a copa dos pinheiros mais me parecem um campo de cardos em flor.
Percorremos a serra ao longo de muitos quilómetros e começamos a descer para a aldeia da Malcata. Já tínhamos feito 60km e ainda não tínhamos visto vestígios humanos, nem um carro, nem uma casa, praticamente nada, a não ser um pastor no alto da serra. Em Malcata aproveitamos para saciar a fome, que já era muita.
Tivemos de seguir por estrada. As cartas desactualizas não mostravam a barragem que foi construída recentemente, mas não demorou muito a entrarmos num caminho. E que caminho! Gigantescos penedos e pequenos carvalhos fazem deste local um ex-libris para o BTT. Voltamos a andar muito depressa. O caminho era fabuloso e muito rápido, mas não deixava de ser técnico, com alguns saltos e “releves”. Caminhos assim são um gozo e fazem-nos “voar”.
Num ápice chegamos a Sortelha. Na minha opinião é talvez a aldeia mais bonita de Portugal. O castelo, erguido num alto, dá a ideia que se vai precipitar para o vale de Riba Côa. Atravessamos a vila, toda ela muito bem cuidada, com as suas casas em granito, confundindo-se por vezes com os enormes penedos. Do castelo as vistas são soberbas, avista-se desde a Serra da Malcata até à Serra da Estrela, que estava branca devido ao nevão dos dias anteriores. Na zona em redor do castelo faz-me impressão ver tantos carros. Fico um pouco irritado, admira-me como é que em locais históricos, como é o caso de Sortelha, permitem o trânsito a automóveis de pessoas não residentes. O problema não está só no facto das identidades responsáveis o permitirem, mas também na “mania” que as pessoas em Portugal têm de tentar levar o carro até onde podem; neste caso, quase que entram dentro do castelo.
Deixamos a fabulosa vila por uma calçada romana, daquelas de fazer estremecer o corpinho todo. Não admira que os neolíticos se tenham instalado nesta zona há uns milhares de anos, é mesmo a terra da pedra. E nós parece que voltámos a entrar na Idade da Pedra: só que eles partiam as pedras para as usarem como utensílios e nós destruíamos as biclas e massacrávamos o esqueleto todo. Pode-se dizer que eles eram bem mais inteligentes que nós, pelo menos não davam cabo do “cabedal”.
Após a demolidora descida, seguimos pelo vale num misto de caminhos e estrada muito secundária, acompanhando, por vezes, uns canais de água. Chegamos a Benquerença e aproveitamos para abastecer os famintos estômagos.
De Benquerença até Penamacor tivemos de atravessar uma pequena serra dominada totalmente pelos eucaliptos. Pelo contrário, a subida e entrada na vila de Penamacor é bastante agradável, por um caminho ladeado de velhos sobreiros.
Na terra de Vamba, famoso rei dos Visigodos, que governou a Península entre 672 e 682, ficámos alojados numa estalagem com mais de duzentos anos. A senhora que nos acolheu era muito simpática, mas falava, falava, falava... Ficámos a saber a vida dos filhos, pais, avós, irmão, sogros, cunhados, cunhadas, vizinhos, etc., etc. Apesar da idade já um pouco avançada, ela toma conta da velha estalagem sozinha, mantendo-a muito bem cuidada.

O pequeno-almoço foi soberbo, a senhora apaparicou-nos ao máximo, servindo-nos um manjar delicioso.
Deixamos Penamacor, nome que uma lenda diz provir de um célebre bandido chamado Macôr. Dizem que o salteador vivia numa caverna com o nome de Penha. Com o passar do tempo, o nome alterou-se para Pena, ficando a terra a ser conhecida por Penha de Macôr ou Pena Macôr. Outra versão da lenda sobre a origem do nome da vila, diz que este provém de uma luta feroz entre os seus habitantes e salteadores. Essa luta deu origem a um tal derramamento de sangue que, de tão má cor que tinha, a vila ficou a ser conhecida por “Penha de má cor”.
O caminho é fabuloso. Com o piso em bom estado, rolamos depressa pelo meio de muros de pedra ainda intactos e bem cuidados. A subida para a Serra do Ramilo é feita por um corta-fogo. Que nem uma “burra” teimosa, a bicla não quer fazer tamanha subida devido à forte inclinação e ao mau piso, mas não é mais teimosa do que eu.
Pedalar na crista da Serra do Ramilo é muito bonito, as vistas são sempre fabulosas, vislumbrando-se em redor as montanhas e planícies. Ao longe avistamos Monsanto. Eu e o Tó baptizamo-lo com o nome de “calhau”, pois o pico, com os seus 758 m de altitude e toda a sua envolvência, faz parecer que se trata de uma única rocha.
A descida da Serra do Ramilo até começarmos a subir para Monsanto é feita velozmente, mas a subida para Monsanto é que já não foi bem assim. O nome “calhau” não podia ser mais bem aplicado. A subida é feita pela milenar calçada romana, ladeada de enormes penedos e sobreiros centenários. O meu traseiro reclama, e de que maneira, devido ao trilho muito pedregoso.
Os poucos quilómetros feitos nos últimos tempos começam a fazer “moça”; o meu corpo já não estava habituado a tamanhas distâncias e a tantas horas em cima da bicla. A má preparação, o mau piso e o forte desnível fazem da subida um desafio enorme, que pouco a pouco foi superado pelos cansados músculos que não paravam de reclamar.
A descida da aldeia do Monsanto é fantástica, é feita por um trilho de calçada romana ladeado por gigantescos sobreiros. O meu “esqueleto” é que não achou muita graça. O acidentado relevo do piso faz com que a suspensão da bicla não consiga absorver a forte irregularidade da calçada, fazendo com que o meu corpo se torne num verdadeiro amortecedor. (É nestes momentos que sonho com uma suspensão total!)
Depois do “calhau”, descemos velozmente até à antiga aldeia de Idanha-a-Velha. Já perdi a conta ao número de vezes que passei por esta maravilhosa aldeia, no entanto, ela continua a exercer um enorme fascínio sobre mim, quer pela beleza da aldeia em si, quer pela paisagem que a envolve. Paramos numa tasca para comer uma deliciosa sandocha de queijo de cabra bem fedorento.
Deixamos Idanha-a-Velha e subimos para um planalto, onde rolamos até Alcafozes. Esta aldeia no meio do nada tem a particularidade de ter uma ermida­-santuário dedicada a Nossa Senhora do Loreto, a padroeira da aviação. A testemunhar este facto encontrar-se no recinto das festas um avião T-37C, pertencente aos Asas de Portugal.
Cerca de oito quilómetros depois, passamos pela Igreja da Sr.ª do Almortão, de grande devoção entre as gentes rainas. Duas semanas depois da Páscoa, é costume fazerem uma enorme romaria em devoção à santa. Uma coisa que me fez imensa impressão e mais uma vez me deixou irritado foi o facto de terem feito uma estrada de duas faixas, com rotundas enormes com saídas para o meio do descampado (deve ser para o trânsito do gado), num local onde só existe a pequena igreja e cuja aldeia mais próxima fica a mais de oito quilómetros. Fizemos parte dessa estrada e durante o percurso não passámos por um único carro, e era dia de Páscoa! Passamos apenas por uma hippie que deambulava por ali de bicicleta. Todo o alcatrão foi colocado só para três dias de festa. Bem que se pode dizer que é o alcatrão e Portugal no seu melhor.
Fizemos alguns quilómetros junto ao rio Ponsul, numa zona de grande exploração agrícola, principalmente pecuária. Pedalávamos tranquilamente até que apareceu um boi, que teimava em não sair do caminho. Quando se dignou a andar, entrou numa cerca onde estavam as vacas e as crias, gerando o caos e pondo o gado todo num alvoroço. A dada altura as crias passaram pelo meio da vedação e foram para outra cerca, do outro lado do caminho. Quando demos por isso estávamos encurralados entre as vacas e os bezerros, numa posição muito crítica. A qualquer altura as vacas podiam investir sobre a cerca e logo de seguida sobre nós, para poderem chegar às suas crias. Subitamente as nossas dores musculares desapareceram e pedalámos mais do que nunca para sair daquele local que estava prestes a ser varrido por uma manada.
Livres daquela situação, não tardou a aparecer-nos outro boi no meio do caminho, com a cabeça colocada para baixo e com aquele olhar de quem vai investir a qualquer momento. Eu não esperei muito, atirei a bicla para o outro lado da cerca e, que nem uma mola, saltei. O Tó resolveu defrontar o bicho e, por incrível que pareça, este continuou na mesma posição enquanto o Tó passava a uns escassos 2 metros de distância dele.
Não demorou muito até chegarmos ao Ladoeiro e logo de seguida, vestidos a rigor, passámos pelo meio do arraial. À medida que nos íamos afastando da vila, ainda escutávamos a música pimba que ecoava pelos montes e vales.
O caminho volta a ser fabuloso. Empurrados pelo vento, pedalamos a alta velocidade pelo meio do montado até voltarmos ao rio Ponsio, para logo de seguida subirmos para um bonito planalto de montado e finalmente voltarmos para Monforte da Beira, onde o carro nos esperava para regressarmos a casa.
Custou-nos mais a viagem de regresso a casa do que os 350km de travessia feitos nos três dias. Era dia de Páscoa e o trânsito estava infernal, se continuássemos a pedalar era muito provável que chegássemos mais cedo a casa.
Foram três dias magníficos, pelos caminhos e trilhos mais selvagens de Portugal. A zona da Raia é toda ela muito bonita, é onde se encontram as aldeias mais antigas e típicas do nosso país, foi onde se travaram inúmeras batalhas desde o paleolítico até à definição da fronteira actual. No entanto, a grande batalha neste momento é a desertificação humana e do solo que assola aquela maravilhosa região.

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