quinta-feira, 27 de setembro de 2007

CABO VERDE

MORABEZA (Crioulo): a arte de bem receber.
É a melhor definição que posso encontrar para Cabo Verde




Este texto foi escrito, enquanto viajava por algumas ilhas, relata alguns episódios, vivências e pequenas reflexões, sobretudo da ilha de Santo Antão, onde passei a maior parte dos dias.
Quanto a tudo o resto, deixo à vossa imaginação, para poderem sonhar com um local onde o tempo, a bondade, a palavra, o sorriso e a simplicidade da vida prevalece.



1º dia.
Entrar no Aeroporto de Lisboa é sinónimo de viagem e de férias. E como tal, estou eufórico e um pouco ansioso, o que me leva a ir algumas vezes à casa de banho. Na verdade, bem que não me importava de ir muitas mais. Na sala de embarque, vejo a bicicleta no carro de transporte de malas, em cima de um caixão funerário! Felizmente que não sou supersticioso, mas…
Ao entrar no avião, sinto que já estou noutro continente, onde já se fala algum Crioulo. Com o decorrer da viagem e a aproximação a Cabo Verde, o português vai desaparecendo. Nota-se que a ansiedade das pessoas em chegar é enorme, muitos já não vêem a família e amigos há muito tempo.
Finalmente chego ao Aeroporto da Cidade da Praia. O clima não é aquele de que me tinham falado, ou seja, quente e seco. É antes muito húmido e sinto logo a roupa a colar ao corpo. Apesar de ainda agora ter começado a estação húmida, raramente chove. Para meu desespero, vejo a bicla a sair a voar do avião. Felizmente uma alma caridosa evita que se estatele no chão, evitando danos maiores, pois seria terrível ter o meu meio de transporte estragado. Finalmente tenho-a, monto-a, vou levantar dinheiro. Sinto que estou a ser observado, e ainda bem que estou, porque se não fosse uma senhora a reparar, o cartão tinha ficado na caixa multibanco.
Saio do aeroporto a pedalar com destino à Cidade da Praia e pedalo que nem um doido. Sinto-me mesmo feliz. Ao descer para a cidade, passo por uma acelera. O branco dos olhos daquela massa negra sobressai como faróis, mostrando o espanto por estar a ultrapassá-la.
A baía da Praia é bonita. Como estamos no fim do dia, vê-se muita gente a fazer exercício na marginal. Vou à procura de dormida, na parte velha, que tem o nome de Plateau. Aqui é onde se localizam a maior parte dos serviços de Cabo Verde. Os edifícios foram construídos na altura da colonização, apresentando uma arquitectura típica portuguesa. Encontro sítio onde ficar. Apercebo-me que os preços são altos, iguais ou mais altos do que em Portugal. Na residencial, avisam-me que é perigoso sair à noite e que é melhor apanhar um táxi para ir jantar. Vou seguir o conselho. Por estar junto ao mercado, a agitação é muito grande. Na realidade, com a chegada da noite, a iluminação é muito escassa e torna-se perigoso.
No restaurante recomendado, enquanto janto, juntam-se a mim quatro pessoas, que se sentam na minha mesa, a falar crioulo. Acho piada à descontracção que têm, sem pedir licença, mas será que é preciso pedir licença? Afinal estou noutro país com uma cultura totalmente diferente. Provavelmente sou eu que já estou habituado a demasiada etiqueta e protocolo. No entanto, tenho a sensação que me querem dali para fora. Vou acabar de comer o excelente peixe grelhado e vou-lhes fazer a vontade.
Apanho um táxi para regressar. Dino, o taxista, diz-me também que não é seguro andar por estas bandas, principalmente se for a pé e se se for loiro! O Dino é porreiro e fico um pouco à conversa com ele. Estou a morrer de frio, tem o ar condicionado no máximo e faz questão de o mostrar. Saio do carro e tenho a sensação de ter a cabeça a rebentar, devido há diferença de temperatura. Vou descansar, que amanhã o dia promete.

2º dia.
Acordo bem cedo, com o calor é impossível ficar muito tempo na cama e vou dar um passeio pelo Plateau antes do pequeno-almoço. Tenho oportunidade de ver o nascer do sol na baía. Volto para a pensão. A confusão no mercado é enorme, aparece gente de todo o lado a vender tudo o que se possa imaginar.
Finalmente a pedalar… Os arredores da cidade fazem-me parecer o pior dos bairros de Lisboa um resort de luxo. Porcos e cabras comem nos esgotos todo tipo de lixo (ainda bem que tinha comido peixe no dia anterior). O cheiro é horrível. Como é natural, toda a gente repara em mim, porque certamente não é muito frequente andarem por ali ciclistas vestidos de licra. A dada altura, vejo que há algum entusiasmo à minha passagem, mas apercebo-me que o entusiasmo não é apenas por mim, mas por um velhote com uma pasteleira, que me está a tentar ultrapassar. O velhote já espuma pela boca; abrando um pouco para o deixar passar e ter o seu momento de glória.
Por fim, fora da cidade e sempre a subir, aproximo-me da montanha. Como não tinha muito tempo, decidi fazer uma volta circular, não passando pelos sítios mais conhecidos como o Tarrafal, que foi em tempos um campo de concentração do regime ditatorial português, e pela Cidade Velha, que foi a primeira cidade fundada em África pelos Portugueses. Dizem que a cidade é um museu ao ar livre.
O interior da ilha é muito montanhoso, fazendo-me lembrar as Dalomites nos Alpes, com os seus picos. A paisagem é um pouco desértica, interrompida por vales profundos com vegetação luxuriante. Aqui sinto, e de que maneira, o efeito da humidade. Nas descidas, ando bastante rápido e ultrapasso, por vezes, as carrinhas-táxi, sempre a abarrotarem de gente e a circularem a alta velocidade. Nas curvas, as pessoas metem as cabeças de fora da janela para fazerem contra peso, e metem-nas mais ainda quando vão atrás de mim. Só oiço os pneus a chiar e as pessoas a berrarem, é um delírio!!!!.
Passo pelas aldeias mais importantes, como São Domingos, Picos e Assomada. Quando aqui chego já estou bastante cansado, devido ao sobe e desce e também à humidade. Apercebo-me que tenho de voltar rapidamente para apanhar o avião. Para regressar, saio do alcatrão e entro no paralelo, para fazer menos desnível, mas apanho mais calor e um piso bastante duro. Passo por pequenas aldeias com extensas plantações de bananas, papaieiras, coqueiros, fruta-pão, etc. Encontro constantemente crianças. Aparecem em tudo o que é sítio. A alguns, estico a mão e digo: “Dá cá mais cinco”; outros sorriem, e outros ainda usam o seu melhor inglês,e dizem: “Money, Money”. Como eu não lhes dou nada, ameaçam atirar-me pedras (efeito nocivo da famigerada civilização). Já não basta estar cansado e ainda tenho que fazer alguns sprints!!!
Chego ao aeroporto a tempo de apanhar o avião para São Vicente. Estou todo “empenado”. Não imagino o desnível que tenha feito, mas pelo mapa vejo que andei cerca de 80km. Sinto que perdi demasiada água e que não a consegui repor. Os toalhetes aqui são providenciais para tomar banho, bem como um saco para isolar a roupa mal cheirosa. Se os alquimistas descobrissem uma essência tão forte como o mau cheiro da roupa, descobririam o filão das essências para perfumes. Tenho pena de me ir embora já de Santiago. Esta ilha tem imensas coisas para ver e a sua história é muito rica. Enfim, o tempo é que não estica!!!
Chego a São Vicente. Vejo a bicicleta a sair do pequeno avião e digo-lhes para terem cuidado. Na realidade, têm demasiado cuidado com a bicicleta e pouca atenção com as outras malas, atirando-as para o chão para me darem a bicicleta. Uma das malas abre-se e espalha-se pelo chão um pote com pó de proteínas de um culturista cabo-verdiano. Instala-se a confusão e começa uma discussão pegada. Saio de fininho para que a coisa não sobre para mim.
Apanho um táxi porque já é de noite. Micão é o apelido do taxista. Micão oferece-se para me levar a conhecer a ilha e também para me levar aos sítios nocturnos mais concorridos. Quando lhe digo que venho de Santiago, começa logo a dizer mal das pessoas de lá. Apercebo-me assim da rivalidade existente entre ilhas.
Chego à cidade de Mindelo e encontro um local barato para dormir. Estou muito cansado, o dia foi muito comprido, e amanhã provavelmente será mais ainda.

3º dia.
Acordo, e ainda é de noite. Consta que o ferry parte sempre mais cedo, e de facto é verdade! Dez para as oito… e parte. Nem tive tempo para tomar o pequeno-almoço.
A viagem é tranquila. Demora cerca de uma hora. Para trás, fica São Vicente, e para a frente, vê-se a silhueta da Ilha de Santo Antão, apercebendo-me do quanto ela é montanhosa.
Quando chego ao porto de Porto Novo, a confusão, mais uma vez, é enorme. Este é o principal porto da ilha, e é por aqui que entra todo o tipo de bens e alimentos para subsistência dos seus habitantes.
Aqui abasteço-me com o essencial para o dia, avisto uma placa com o destino para onde pretendo ir e fico surpreendido: “Tarrafal de Monte Trigo - 20 kms”. Olho para o mapa e vejo que nem a direito tem esta distância! Pelo que me dá a entender são cerca de 50 km, com uma ida aos 1500 m de altitude.
Começo a pedalar, o calor é imenso e o piso é em paralelo. Aliás, não existe alcatrão nesta ilha. A paisagem é desértica e vulcânica, por vezes, com dunas de areia preta, e também com gargantas escavadas, provocadas pelas enxurradas de água e lama. Depois de ter feito 10 kms, começo a subir. Quando termina o empedrado, começam os caminhos em mau estado. O calor continua insuportável e para ajudar a humidade é terrível. Subo, subo… o tempo muda e começa a chuviscar. Entretanto, uma névoa começa a envolver-me, não me deixando ver nada. O terreno começa a ficar algo empapado e as rodas dão-me a sensação de pesarem toneladas. Sou obrigado a desmontar, algumas vezes, devido à lama que se acumula entre os travões e os pneus. Durante muito tempo, sou eu e a bicicleta. O silêncio é absoluto. Passam-me mil e uma coisa pela cabeça e remeto-me aos meus pensamentos. Não tenho a noção de há quanto tempo estou a andar com estas condições, pois não tenho relógio nem ciclómetro. Contudo, apesar da chuvinha, a temperatura é agradável.
Oiço vozes, e, junto ao caminho, encontro umas pessoas que ficam incrédulas por verem um ciclista, ainda mais nestas condições. Pergunto-lhes quanto falta para chegar ao topo. Respondem-me que cerca de meia hora e comentam, alegres, que é a primeira chuva do ano. Fico feliz por eles. Por ser filho de agricultor, sei o quanto este liquido é precioso.
Mais um ou dois kms, vejo uma casa com alguns miúdos com os olhos esbugalhados a olharem para mim. Volto a perguntar quanto tempo falta para o topo e respondem: “Algumas horas”. Percebo que a noção de distância para estas pessoas é muito relativa. Como não vejo nada, não me consigo localizar, ainda que tenha o mapa. Todavia, começo a sentir o vento a vir de várias direcções, sinal que estava a chegar a um colo. Subitamente o tempo levanta e fica um calor abrasador, mas mais impressionante do que isso, é ter uma cratera enorme à minha frente. Contorno-a e paro para a admirar durante algum tempo. Embora não haja qualquer tipo de vegetação, toda a paisagem envolvente é lindíssima.
Estou quase sem água e comida, e também me apercebo que o tempo pode mudar a qualquer instante. Decido descer. A descida é muito rápida, demasiado rápida… Caio, mas não vale de muito, continuo a descer muito depressa. Avisto bem no fundo de um vale o meu destino. O caminho torna-se muito pedregoso, um massacre para o meu corpo, paro algumas vezes para aliviar os gémeos e os pulsos. Afinal, estou a fazer uma descida com 1500 m de desnível. Termino a descida e só uma praia de areia negra me separa do meu destino. Finalmente estou em Tarrafal de Monte Trigo (Tarrafal d Mont Trig, em crioulo).
Este é o único lugar onde reservei dormida durante toda a estadia em Cabo Verde. Aqui tudo fervilha de vida, crianças por tudo o que é sítio. Ficam maravilhadas por eu ter chegado. Muitas delas nunca tinham visto um tipo como eu a chegar ali de bicla. Indicam-me o local onde vou ficar. À porta está um papel com um desenho de uma bicicleta e com o meu nome, com a seguinte mensagem:
“Hello João! If you arrived and do not see anyone, just call me - loud (“Susi, Susi !!!”). I may be working up in back or even taking a rest. If you arrived on your bicycle I won´t hear you, and no one else is here today.
Welcome to Mar Tranquilidade”.
Susi (americana) e Mark (alemão) residem aqui há já alguns anos. Conheceram-se na Alemanha, beberam umas cervejas e resolveram dar a volta ao mundo de veleiro e de bicicleta, até que chegaram a este sítio maravilhoso e decidiram ficar por aqui. Eu concordo plenamente com eles, este local é verdadeiramente fabuloso. Decido logo ficar aqui mais um dia.
Enquanto tomo banho, Leiny, a empregada, prepara-me uma sopa, e que sopa! Soube-me mesmo muito bem, depois de tanto sol, chuva, lama e pó. Vou dar um mergulho. Apesar da praia ser de areia negra a água é muito clara e o fundo marinho é belíssimo. Nesta praia está um veleiro de um Francês, que anda a dar a volta ao mundo. Nado até lá e meto conversa com ele. Diz-me que está aqui há uma semana porque é um local muito bom para fazer mergulho.
Na praia, meto-me à conversa com uns velhotes e arranjo logo uma discussão. O tema são os Espanhóis, que andam por ali com uns arrastões a levar o peixe todo. Com o calor da discussão, começam a falar muito naturalmente crioulo, e como é normal, não percebo nada.
Converso com Leiny, enquanto prepara o jantar. Diz-me que nunca saiu dali, mas é muito feliz. Gosta muito de trabalhar e gosta de ser independente. Porém, queixa-se do marido que é muito mandrião. Entretanto, a discussão dos velhotes continua…
Ao jantar, Susi faz-me companhia. É uma pessoa fabulosa, tem uns ideais e uns princípios de vida muito giros. Entretanto, aparece o Francês e bebemos um grogue para brindar.
Hoje na aldeia está tudo entusiasmado. Ao fim de muito tempo, resolvem pôr o gerador a funcionar, mas fico incrédulo com a razão pela qual tomam esta iniciativa. Está por cá um político, e em vez de barafustarem por não terem um gerador que funcione, não, esforçam-se por mostrarem que o tem, mesmo que esteja em péssimas condições. Resultado: puxam demasiado pela máquina e esta acaba por estoirar. Agora electricidade só daqui a umas semanas, meses, sabe-se lá... As pessoas, aqui, são muito boas e simples, fazem de tudo para agradar.
Infelizmente para eles, mas felizmente para mim, sem a electricidade, as pessoas tornam a reunir-se em grupos na rua à conversa e a cantar. Se houvesse electricidade nada disto sucederia, estariam em grupos a ver televisão de olhos vidrados, a absorver todo o tipo de porcarias que esta transmite. Apercebo-me o quanto a televisão pode ser agressiva para um povo tão simples.
Dou um passeio na Praia e adormeço a olhar para as estrelas. Acordo com um som de batuque… tenho que investigar…

4º dia.
Apesar de ser bem cedo, os homens já estão a discutir. Aliás, passam o dia a discutir, e pouco mais fazem, enquanto as mulheres já estão a trabalhar ou, então, surpreendentemente, algumas fazem exercício na praia. Como decido ficar por cá mais um dia, vou a pé até a Monte Trigo. Susi, que já está por cá há alguns anos, nunca foi a pé a Monte Trigo. Mesmo as pessoas da aldeia, poucas são as que lá foram a pé. Normalmente vão de barco, por isso está justificada a resposta, quando pergunto quanto tempo demora a lá chegar. Uns respondem que demora muitas horas, outros, poucas horas. Bem, o que me vale é o mapa!
Antes de entrar no trilho, passo pela aldeia e por alguns campos de cultivo. Esta zona é a única parte verde nesta metade da aldeia, devido à enorme nascente que brota no meio da rocha. Aqui a água é mais que aproveitada e reaproveitada, vale ouro. O trilho é muito exposto. Caem frequentemente pedras da montanha. Há partes em que o trilho desaparece por haver, de vez em quando, algumas avalanches. A certa altura, o trilho divide-se em dois, opto pelo de baixo. Passado algum tempo, vejo que optei pelo errado. O trilho desaparece e como o outro está por cima, começo a fazer escalada. A certa altura já não posso descer, pelo menos em segurança. A única solução é tentar continuar a subir. Para fazer este pequeno desnível demorei muito tempo. Um pequeno erro e poderia ser fatal. Aqui podem passar-se semanas sem se ver ninguém, e mesmo que aqui viesse alguém, nunca me iria ver. Finalmente, encontro um trilho. Tenho as mãos bastante polidas, pois a rocha vulcânica é muito abrasiva. O trilho continua, num sobe desce constante, até que a certa altura transforma-se numa auto-estrada! Fico surpreendido com a qualidade do trilho, todo feito com rocha vulcânica trabalhada. Nem imagino o trabalho que tenha dado a fazer! Mais alguns kms e chego a Monte Trigo, a aldeia mais isolada da ilha, e que é abastecida por barco. Esta aldeia fica mesmo por baixo do pico mais alto de Santo Antão: Topo da Coroa, com 1977m.
O meu cicerone é o Ilídio... Mete conversa comigo e mostra-me a aldeia. Ficamos na cavaqueira com mais uns amigos dele. Já tinha reparado anteriormente mas confirmo que tanto os jovens, como os mais velhos, bebem muito grogue. Susi já me tinha alertado para este grave problema. Miúdos espertos e inteligentes queimam o cérebro com imenso álcool.
Regresso a Tarrafal de Monte Trigo. Cruzo-me com o Francês do veleiro. Embora esteja por aqui há algum tempo, nunca saiu da aldeia, e como soube que eu tinha ido a Monte Trigo, decidiu ir também.
Passo por algumas praias de areia negra inacessíveis. Com o calor abrasador vinha mesmo a calhar um banho refrescante na praia. Consigo chegar a um desfiladeiro profundo e arranjo finalmente maneira de descer. Na areia são visíveis os rastos deixados pelas tartarugas, pois é a altura do ano em que elas põem os ovos. Depois de um refrescante mergulho, retorno ao trilho para regressar a Tarrafal. Ao chegar, a confusão na praia de Tarrafal é enorme. É o dia em que o barco vem entregar e levar todo o tipo de coisas e pessoas. Como não existe cais, algumas pessoas vão a nado e outras vão nuns barcos pequenos.
Quando chego a casa, a Mar Tranquilidade, tenho, como ontem, uma belíssima sopa à espera. Entretanto, no intervalo de alguns mergulhos no mar, repito a sopa mais algumas vezes. Isto sim, é que é vida! Boa gente, praias belíssimas e muita montanha… Estou no paraíso!
Mais tarde, chega um casal de Franceses, que vivem no Senegal. Trazem muito pó e muito cansaço. Contam-me que a viagem foi como tivessem vindo dentro de uma máquina de lavar.
Estou a ver que vir para aqui de bicicleta é muito mais pacífico, do que vir de carrinha. Claro que eles não concordam com a ideia, acham que sou maluco por ter vindo de bicla para este local (se calhar têm razão).
Como habitual, os velhos estão a discutir… Pergunto à Leiny qual é agora o motivo da discussão e ela responde que há um barco que deixa entrar água, e todos os dias um deles tem que tirar a água dentro dele. E a discussão é para saber quem é que hoje vai tirar a água do barco. E pronto, temos discussão para mais de duas horas. A noção de tempo é coisa que não existe por aqui, a vida passa muito lentamente em locais como este.
O pôr-do-sol aqui é divinal! E é assim que vou jantar, à luz das velas e com o casal Francês como companhia. Comemos uns verdadeiros petiscos. Vou dar um passeio pela praia e cruzo-me com alguns pescadores, que me dizem que, apesar te terem a casa a 50 metros e família, preferem dormir na praia para estarem mais perto do mar. Olho para o veleiro do Francês e reparo que não tem luz, ou seja, ele ainda não regressou e já é de noite. Vou deitar-me, que estou muito cansado. Pelo que pude ver no mapa, tinha caminhado cerca de 25 kms, e com um desnível de subida com cerca de 1300 m.
Quando me deito, olho do meu quarto para o veleiro, pela última vez, e vejo finalmente luz. Fiquei aliviado por ele ter voltado. Sei o quanto o trilho podia tornar-se perigoso.

5º dia
A minha ideia hoje é sair ainda de noite e, com ajuda de uma pequena luz, começo a pedalar. Adoro andar a pé ou de bicla à noite, os nossos sentidos ficam muito mais apurados. Mas a razão de sair de noite, desta vez, é para evitar o calor. Vou fazer uma subida com cerca de 18 kms muito dura. Mesmo às 5 da manhã, já está muito calor e a humidade é muita. Subo, subo… Na cota 500, nasce o Sol, e vejo bem lá ao fundo, pela última vez, Tarrafal de Monte Trigo. Sem dúvida, um dos locais mais fabulosos que estive até hoje. Infelizmente, parece que está em perigo de perder a sua beleza natural. Constou-me que estão a planear fazer uma estrada para depois construírem hotéis. Sei que a estrada é necessária, e que as pessoas a reclamam e têm direito a ela. Questiono-me é se aquelas pessoas estão preparadas para o que ela vai trazer!!!
Monte da Panela Quente e Queimado são alguns dos locais descritos no mapa pelos quais passo na subida. Na verdade, estes nomes não poderiam ter sido melhor escolhidos. Descrevem fielmente as características orográficas dos locais. Quanto mais subo, maior é a intensidade solar, mas em contrapartida o calor torna-se mais seco e consequentemente mais suportável. Com algumas horas já feitas de subida, é fundamental controlar a água. Vou fazer muito kms sem ver nada, apenas paisagem vulcânica. Não se vê nem uma única erva, embora apareçam cabras, muito de vez em quando! Como é que isto é possível num local tão inóspito como este?
Finalmente, chego ao planalto e deixo para trás uma subida bastante difícil. Já fiz muitas difíceis, mas esta!!! O piso aqui é rolante e rápido, ando mesmo muito rápido nesta paisagem lunática, mas tenho já pouca água. Mais uns kms e vejo uma casa com painéis solares. Interrogo-me se estou com miragens ou se estou na lua. Interrogo-me ainda mais quando me aproximo e começo a ver dois vultos brancos em cima do telhado! Vultos brancos que se tornam em duas belas raparigas. Definitivamente estou com miragens!!! Mas não, são duas raparigas, mesmo! Contudo, elas ainda estão mais espantadas do que eu. Nunca aparece por ali ninguém, e havia logo de aparecer um tipo de bicicleta. É algo completamente surreal para elas. Depois das apresentações feitas, Beta e Giorgia explicam-me a razão porque ali estão. Fazem parte de um projecto que é desenvolvido, em parceria, pelo governo local e por uma instituição agrícola da zona de Piemonte (Itália), com o objectivo de produzirem um queijo, que afirmam ser um dos melhores do mundo. Acredito que sim, mas interrogo-me que espécie de queijo poderão produzir aqui, se não existe uma erva para as cabras comerem? Elas esclarecem que não tarda muito vão chegar as chuvas, e aí sim, vai haver leite para fazer o queijo. Até lá…
Depois de alguma conversa, fotos e abastecimento de água, sigo. Estou mesmo feliz! Até agora tudo tem corrido bem, e surgem sempre situações interessantes! Continuo a pedalar, num sobe e desce ligeiro, ao longo do planalto, contornando alguns pequenos cones vulcânicos. Só desejo que nenhum deles comece a ficar mal disposto, pois consta que recentemente houve uma erupção. Começo finalmente a descer e aparecem as primeiras casas isoladas. Começa a aparecer também algum nevoeiro, que se torna muito denso e acaba em chuviscos. Não vejo nada! O piso torna-se muito irregular e pedregoso. Pressinto que saí do caminho certo. Estou perdido… Entretanto, oiço vozes e tento chegar a elas… e consigo. Devo ter-lhes parecido um D. Sebastião de bicicleta a sair do nevoeiro!
Os velhotes dão-me indicações preciosas para regressar ao caminho correcto. Desço, desço, e, por fim, o nevoeiro dissipa-se e à minha frente. Torno a ver o mar e também algumas aldeias isoladas com bastantes campos agrícolas, mas tudo bastante seco à espera das primeiras chuvas. Dirijo-me para uma aldeia chamada Chã de Norte, para tentar arranjar comida. Compro uma lata de sardinhas e a dona da pequena mercearia, muito gentilmente, dá-me um pouco de pão, e assim, tenho o almoço feito. Enquanto estou a comer, aparecem muitos curiosos para me verem. Aos maiores, deixo-os andarem de bicla, aos mais pequenos, tiro-lhes umas fotografias e mostro-lhas. Continuo a descer bem depressa, e de barriga cheia, até ao fundo do vale, para logo ter de voltar a subir, e esta subida é bem inclinada. Mais uma vez o calor é insuportável, sinto-me totalmente a destilar. Felizmente a subida suaviza e entro na simpática aldeia Ribeira da Cruz (Rbera do Kruz, em crioulo). Aí falo com uns miúdos para satisfazer a sua enorme curiosidade e sigo caminho. A partir daqui, volto a entrar no empedrado, tenho que fazer mais de 800 m de desnível de subida, que até não é muito inclinada. Durante a subida tive de parar algumas vezes, devido ao calor que é insuportável. Encontrei uma mercearia e bebi uma Coca-Cola, coisa que raramente faço, mas esta soube-me mesmo bem. Ao fim de algum tempo, finalmente chego ao colo da Selada de Alto Mira. A vista é fabulosa. Paro para descansar e para contemplar. Seguidamente, desço muito depressa e passo pelas poucas e pequenas aldeias a alta velocidade. As pessoas olham-me muito espantadas, visto que ia a uma velocidade estonteante. Paro em Lagedos e entro numa tasca para comer alguma coisa. A senhora serve-me uns bolos secos deliciosos e compro os que consigo meter na minha pequena mochila de 20 litros. Aqui fico à conversa com um cabo-verdiano, que já esteve a trabalhar em Portugal, e até conhece a minha pequena aldeia Santa Susana. Continuo a descer, e finalmente avisto uma recta com cerca de 10 k m até Porto Novo. Apesar de ser plano está um vento muito seco de frente. Enfim, até à chegada vou ter de sofrer, mas eu gosto é disto!!!
Devo ter feito cerca de 90 kms, cerca de 10 horas a pedalar, e o desnível de subida era acima dos 2500 m. Hoje só quero sopas e descanso, mas mesmo isto tenho que ir procurar.

6º dia
Depois de um reforçado pequeno-almoço, saio de Porto Novo, mais uma vez com uma longa subida para começar o dia. Vou fazer a principal via de ligação do lado Sul ao lado Norte. Apesar de praticamente não circularem carros, só se nota algum movimento quando chega um barco ao porto. E quando chega, sai logo uma procissão de carrinhas com os passageiros recém-chegados, montanha acima.
Quando início a subida, começa a apertar o calor, e depois é o forte vento que, por várias vezes, quase que me atira ao chão. Para completar o menu, passo por uma tempestade de areia. Tenho areia por tudo o que é sítio e faz-me arder os olhos. Quando tenho o vento de costas quase não preciso de pedalar, quando está de frente não consigo manter os olhos abertos, o que me obriga a andar no carreto mais leve, mas quando está de lado, o vento faz o papel de juiz ao aplicar, e de que maneira, a lei da gravidade para me tentar mandar para o chão. Mas eu aguentei e venci-o. O horizonte está todo amarelo devido à areia. Os locais chamam-lhe o vento Suão.
Finalmente, chego ao topo. À minha frente está a maior cratera de Santo Antão. É enorme! Se a cratera não tivesse abatido seria um pico com cerca de 3500 m de altitude, assim só tem 1500 m. A Cova de Paúl é usada exclusivamente para a agricultura. Em redor, existe alguma floresta com cedros e pinheiros. Desço para a cratera e tento encontrar um trilho para passar para o outro lado, mas encontro o trilho em muito mau estado e percorro-o todo com a bicicleta às costas. Quando chego ao topo, a vista, mais uma vez, é deslumbrante. À minha frente está o mais conhecido de todos os vales: Vale do Paúl. É muito verde e é todo aproveitado para agricultura. À minha frente espera-me uma descida alucinante, um estreito trilho pedestre com dezenas de s’s e com curvas a 180 graus. Começo a descer… nunca tinha feito nada assim, é a loucura total! A loucura leva-me a cair uma vez mais, mas nada que me impeça de gozar e abusar deste momento. Desço, desço… os aros fervem com as travagens. Quando começo a avistar as primeiras casas, aparecem miúdos descalços a correr atrás de mim. Acelero quanto posso neste zig-zag, mas não consigo despistá-los, é a risota completa. Paro numa aldeia para almoçar. Almoço num terraço de uma casa com uma vista fabulosa. Neste vale paradisíaco moram alguns europeus, que vieram à procura de tranquilidade, e alguns até recebem pessoas num ambiente bastante familiar. Continuo a descer. Em meu redor vejo aldeias perdidas na montanha. Aqui predominam as bananeiras, a fruta-pão e a cana-de-açúcar, utilizada para produzir o famoso grogue.
Chego a Vila das Pombas, uma bonita vila à beira mar. Abasteço-me na mercearia e, mais uma vez, fico à conversa. Agora sigo sempre junto ao mar, mais 15 kms, e estou na Ribeira Grande, uma das principais vilas de Santo Antão. É aqui que se encontra a maior parte dos serviços, e é também a parte da ilha que foi inicialmente habitada, após a descoberta da Ilha de Santo Antão, pelo navegador português, Diogo Afonso, em 1462, e sua colonização em 1548.
Volto a entrar num vale, mas vou andar um pouco mais. Mais à frente no lugar de Gem, mora a Deolinda. A Deolinda é uma senhora que trabalha para um amigo, e estava precisamente nesta altura de férias na Ilha de Santo Antão, a sua terra. Quando soube que eu ia para lá, disponibilizou-se para me receber em sua casa. Chego e sou recebido calorosamente por ela, sua filha e seus três netos. Tomo um duche e vamos assistir a um jogo de futebol. No campo pelado e cheio de pedras, o jogo é algo singular. A menina das pipocas atravessa o campo várias vezes, provavelmente para distrair os jogadores. Uma falta mais dura e é logo invasão de campo. Enquanto discutem, o árbitro espera na conversa com uma pessoa da assistência. Recomeçam o jogo mas ainda continua a discussão. Marcam um golo e é invasão de campo outra vez. O que é engraçado, é que apesar das discussões nunca passam a vias de facto, e quando acabam o jogo, mesmo perdendo, a festa continua com muita música e bebida. Esta noite, vou ter que ir a algumas casas porque fui sendo convidado por algumas pessoas. Comer, beber e dançar, enfim, um aborrecimento!!!

7º dia
Vou a rolar até à Ribeira Grande, para depois entrar noutro vale e para mais uma subida, bem inclinada, e como é da praxe, com muito, mas muito calor. Por algumas vezes, tive de recorrer a algumas sombras para ventilar um pouco. Passado o colo, faço uma descida vertiginosa, mais uma vez a velocidade é altíssima, e se alguma coisa se atravessa à minha frente, não é a bicicleta que vai para casa em cima do caixão (como no Aeroporto de Lisboa), mas sim, eu.
Mais em baixo entro num desfiladeiro enorme. Sigo durante algum tempo, saio do desfiladeiro por uma forte rampa, para logo de seguida entrar na aldeia Chã de Igreja (Txan d Igreja, em crioulo).
Abasteço-me de água e continuo até chegar à beira mar. Passo por mais uma pequena aldeia piscatória, para de seguida entrar no mais conhecido trilho de todo o Cabo Verde. Um trilho pedestre na falésia à beira mar. Ainda que seja pedestre, vou fazê-lo de bicla. O trilho é lindíssimo, num sobe e desce constante sempre com mar do meu lado esquerdo e uma enorme montanha do meu lado direito. Por vezes é tão estreito que raspo com o ombro na rocha e, do outro lado, um pequeno muro separa-me do precipício. Quando chove, não é aconselhável fazer o trilho, devido à queda de pedras. Aqui, encontro os primeiros turistas, é a minha oportunidade para me tirarem algumas fotos com a minha máquina. Até os europeus ficam um pouco perplexos por me verem andar por aqui de bicla. Passo por uma aldeia, de nome Fontainhas. É belíssima e muito colorida e está suspensa na falésia. Só para chegar a ela, num curto espaço de tempo, tenho de subir uma enorme rampa a morder o volante, e logo vem uma descida bem inclinada. Estou quase acabar este maravilhoso trilho… Agora percebo porque é o mais conhecido e o mais procurado.
Ao longe, avisto avila Ponta-do-Sol. À entrada da cidade, vejo uma coisa interessante: um condomínio de cortes para porcos. Uma solução para retirarem os porcos da cidade e um espaço comunitário para as pessoas criarem os seus bichos(pena que não tenham janelas para desfrutarem a vista).
A cidade é bonita, com uma arquitectura tipicamente colonial. Almoço mandioca com peixe grelhado e faço um pouco de praia. Custa-me muito começar a pedalar depois de ter estado a espreguiçar na praia, mas tem de ser! Consta-me que aqui a temperatura da água do mar tem vindo a subir, o que fez com que os vulcanólogos declarassem que pode haver o risco de novas erupções. Sigo para Ribeira Grande. Passo por uma praia e não resisto em dar mais um mergulho. Chego finalmente ao Lugar de Gem. Esta zona está cheia de bananais e árvores de fruta-pão. Mais uma vez sou recebido com euforia pelos miúdos. Sinto-me mesmo bem aqui, é como estivesse em minha casa, querem saber das minhas aventuras passadas durante o dia. Os putos, aqui, têm imaginação e muita habilidade, arranjam brincadeiras com qualquer coisa, brincam e divertem-se na rua, e não é preciso Barbies, nem Nintendos e muito menos ficam isolados dentro de casa. Aprendem, desde muito novos, a conhecer os sinais da natureza e a respeitá-los. Também crescem muito cedo, por vezes demasiado cedo porque a vida não lhes é fácil, mesmo assim estão sempre sorridentes e felizes.

8º dia
Saio deste local idílico, já com saudades. Fico muito grato à Deolinda e sua família por me terem acolhido, apesar de nunca me terem visto antes. Enriqueci a minha alma e o meu espírito com a sua humildade e a sua simpatia, sem pedirem nada em troca. Representam bem a famosa hospitalidade do povo de Santo Antão, não que eu tivesse dúvidas, mas esta experiência veio reforçá-la.
De volta à estrada, espera-me como é habitual uma vez mais um desnível de 1600 m de subida, ou seja, mais um empeno. A Estrada da Corda, como é conhecida, é a principal ligação da Ribeira Grande para Porto Novo. Já tinha feito a estrada da parte sul, faltava fazer a ligação da parte norte. De início, acho que é muito inclinada, mas como está a chuviscar e uma temperatura agradável, subo a bom ritmo. Finalmente, faço uma subida sem apanhar calor, pena é que não se veja nada, e sei, pelo que me disseram, que a vista desta estrada é muito bonita. A estrada da corda faz-se sobre uma crista sempre com vistas para os dois lados. Está nevoeiro e por vezes ouço vozes e risos, mas nunca vejo ninguém.
Em pouco tempo chego ao topo e novamente à Cova do Paúl. Felizmente quando aqui tinha passado estava bom tempo, agora não vejo nada. Não desço, por onde tinha subido há dois dias, vou procurar um velho trilho. Consta que este foi um dos primeiros a atravessar a ilha. Para o encontrar tenho de ir até ao Pico da Cruz. Imagino que aqui as vistas também devem ser lindíssimas… mas é isso mesmo, não deixa de ser uma imaginação por causa do nevoeiro. Encontrar o trilho torna-se difícil. Só com a ajuda de um pastor consigo encontrá-lo. Um miúdo propõe-se a acompanhar-me nos primeiros kms. E que trilho! Inicialmente encontro um no meio de um bosque com um bom piso e curvas com relevês. É um delírio! E o miúdo sempre a correr atrás de mim. Com este cenário nebuloso a pairar sobre o bosque, só me faltava aparecer um duende! Pensando melhor, acho que o rapaz já é ele próprio um guia-duende e protector.
A certa altura, ele dá-me algumas indicações em crioulo para continuar. Tem de voltar para tomar conta do seu rebanho. Fico-lhe grato por ter sido o meu pastor e ter conduzido esta ovelha tresmalhada.
As crianças só começam a aprender Português quando vão para a escola, mas mesmo assim consigo entender-me com eles.
Continuo a descer e o nevoeiro começa a desaparecer, bem como o trilho para meu desespero... Bem lá ao fundo, vejo Porto Novo, mas ainda me encontro a muito altura, cerca de 1000 m.
Voltar para trás está fora de questão. Continuo até que, a um certo ponto, tenho que ir sempre a pé, pois o que era em tempos um trilho é agora um monte de pedras rolantes e abrasivas. Torna-se num massacre para os meus joelhos e tornozelos. E lá vou descendo devagar sempre com a bicicleta a arrastar. Do outro lado do vale profundo, vejo a estrada, mas tenho de seguir por aqui, não há nada a fazer. O nevoeiro desapareceu e as poucas árvores também. Estou de volta ao deserto vulcânico. Porto novo continua bem lá ao fundo, e o calor aperta bastante. Ao fim de algumas horas, chego a uma aldeia abandonada. A partir daqui já dá para descer montado, mas o piso continua muito pedregoso. Mais uns kms à frente e tenho oportunidade de me vingar. Desço velozmente. Finalmente chego a Porto Novo, aquilo que parecia ser um dia fácil, tornou-se bastante violento para o meu corpo. Doem-me articulações que nem imaginava ter. O pneu tubless de trás, que trouxe novo, está bom para ir para o lixo, mas agora pouco me importa… Tinha acabado o meu objectivo em Santo Antão, e pouco mais vou andar daqui para frente.
Depois de descansar, dou um passeio pela cidade e encontro as duas italianas, que tinham vindo buscar mantimentos. Conheço um português, que já viveu no Cacém, e que agora tem por aqui um Ciber-Café. Confessa que ter vindo para aqui foi o melhor que podia ter feito, pois é uma terra de oportunidades, e o clima, por ser seco, em Porto Novo, é-lhe muito conveniente para o problema que tem nos ossos. Como eu o compreendo! Vivo, apenas, numa das zonas mais húmidas de Portugal! À noite, janto numa pizzaria e fico surpreendido com a bela mistura da cozinha cabo-verdiana com a italiana.
É a ultima noite que passo em Santo Antão. Foram dias maravilhosos: as pessoas, as montanhas, as praias!! Foi tudo muito intenso para mim, vou levar algum tempo a digerir todas as minhas experiências e vivências. Vou deitar-me, estou muito cansado, mas muito feliz. Sinto-me como uma criança!!!

9º dia
Desta vez não tenho de me levantar muito cedo e tomo o pequeno-almoço a ver a agitação do porto. Apesar da confusão, aquilo funciona. Tal como da outra vez, o barco sai adiantado dez minutos, mas desta vez estou atento. Para trás fica a silhueta da Ilha de Santo Antão. Que dias fabulosos, passei, eu, nesta ilha! O mar desta vez está com uma ondulação muito grande, muitas pessoas fazem uma lavagem ao estômago. Tento andar em pé mas sou logo projectado, é melhor ficar quieto. Ao entrar na enorme baía de Mindelo, o mar acalma. Quando vou buscar a bicicleta, vejo que está soterrada em bananas! Como vou ficar um dia em São Vicente, vou percorrer uma parte de bicicleta. Saio de Mindelo a pedalar com o pneu em muito mau estado. Só espero que aguente mais uns kms! Vou até à famosa Baia das Gatas (gatas:uma espécie de tubarão), são cerca de 15 kms. A Baía das Gatas é muito bonita e tem umas praias maravilhosas. Fico um pouco surpreendido por haver tão poucos hotéis e também poucas casas. Normalmente em sítios como este, é normal haver especulação imobiliária e um turismo desenfreado, mas aqui não! E ainda bem que não! Cheguei uma semana atrasado. Tinha acabado de se realizar o famoso festival da Baia das Gatas. Vem gente de todo o lado. Vou a uma tasca e, enquanto me preparam uma cachupa, vou dar uns mergulhos. Quando volto, lá tenho uma maravilhosa cachupa de cevada à minha espera. Apesar dos milhares de moscas e de algumas baratas à minha volta, é um local acolhedor, mas não há nada que um potente picante não desinfecte, neste caso, algum bicho esquisito que possa aparecer na dita. Fico por mais duas horas à conversa com os donos. Tudo pessoal porreiro! Almoço com eles e falam-me das suas dificuldades e sonhos. Um desses sonhos é ir para Portugal. Alerto-os que em Portugal a vida não é nada fácil, e pelo o que me é dado a ver, aqui, apesar de haver pobreza, não é necessário muito para viver. Convidam-me para ficar por ali mais um dia, mas tenho que seguir. Tenho que apanhar o avião bem cedo, no outro lado da ilha. De volta à estrada, tenho que fazer mais uns 30 kms. Além de ser pouco a subir, também ainda sinto bem o peso da cachupa, bem como aquele calor tórrido, que não ajuda nada. Sinto a pele a fritar. Chego à pequena aldeia piscatória de São Pedro e procuro um local para passar a noite, mas não encontro. A única solução é um resort, que está do outro lado da praia. Não me apetecia voltar para Mindelo, que fica a uns 10kms. A praia de São Pedro fica a 1 km do aeroporto, e também perto de um farol que já tinha visto quando tinha aterrado há uns dias atrás. Daí a minha opção de ficar aqui bem perto, e como tinha o voo no dia seguinte às oito… O que vou pagar aqui, é mais do que gastei nos restantes dias em Cabo Verde para dormir. O que vale é que fica junto ao mar e a praia de São Pedro é muito bela. Faço uma caminhada por um trilho até ao farol, regresso ao fim do dia. À noite, vou jantar e o empregado chama-me à atenção de que não tenho roupa apropriada, por estar de calções. Proponho então o seguinte: pagam-me um táxi para me levarem a Mindelo ou então arranjam-me umas calças apropriadas. Num resort de praia isto é inacreditável, tanto mais que depois entram outras pessoas de calções, só que estes devem ter mais 1 cm de comprimento do que os meus. Por fim, o empregado deixa-me jantar, afinal ele não passa de um empregado a cumprir ordens. Quando chegar a Portugal, farei a respectiva reclamação, pois isto pertence a um grupo português. As férias até agora foram fabulosas, e não será este pormenor que as vai estragar. Tenho saudades do pessoal e da tasca da Baia das Gatas. A meio da noite, acordo com um cheiro horrível. Muitos resorts de praia isolados não têm estação de tratamento de esgotos. Sai muito mais barato enviar a porcaria por um canal para o mar. Só que o vento esta noite estava contra e trouxe o mau cheiro para o hotel. Enfim, estou mais que arrependido de ter ficado aqui...

10º dia
Acordo bem cedo para apanhar o avião. Estou desejoso de sair deste resort. Vou para a Ilha do Sal. Sei que esta ilha é só para quem faz praia. Tenho mesmo que vir para aqui porque tenho de fazer escala. Como é habitual, saio do Aeroporto a pedalar para Santa Maria. A princípio, vou por caminhos, mas o mau estado do pneu obriga-me a ir pela estrada, está mesmo nas últimas… A Ilha do Sal é muito pequena e extremamente seca, nem uma erva nasce. Fico a pensar que mal teriam feito os primeiros colonos, para que os Portugueses os mandassem para este local desértico, há cerca de 500 anos.
Em Santa Maria, consigo arranjar uma pensão com um preço razoável. Aqui é tudo muito caro, devido enorme afluxo de turistas, principalmente Italianos e Franceses. A praia de Santa Maria tem alguns quilómetros de comprimento. Ao longo da costa, florescem hotéis, apartamentos e resorts, de uma maneira desordenada. Por todo o lado, encontra-se uma enorme quantidade de gruas e de betão que dão uma imagem horrível. Devido à enorme especulação imobiliária, a velha e pequena aldeia piscatória está a desaparecer. Os locais vendem os terrenos muito baratos, e com o pouco dinheiro constroem um bairro no interior, nas traseiras dos hotéis e resorts, perdendo o contacto e as suas tradições com o mar. Com a vinda do turismo em massa, vêm também os males da dita civilização: a droga, a prostituição e a sida.
Dou um passeio pela comprida praia, a água é mesmo apetitosa. Faz-me impressão como é que com um mar destes, as pessoas ficam nas piscinas dos hotéis, saindo por vezes tão pouco. A maior parte das pessoas que fazem este tipo de férias, não fazem férias propriamente, simplesmente mudam de casa, porque de resto não mudam muito as suas rotinas e hábitos. Quando volto para a pensão, encontro o Francês, que tinha estado com a sua esposa em Tarrafal de Monte Trigo. Ela voltou para casa e ele veio para aqui fazer Kite-Surf. Convida-me para ir experimentar, mas infelizmente não posso, tenho que estar no aeroporto amanhã cedo. Saio de Santa Maria com um quadro comprado na noite anterior, que custava 40€, e que consegui por 15€. Estive uma hora a fazer negócio com o Senegalês, que se desesperou um bocado por ter estado tanto tempo para lhe comprar o quadro. Mesmo assim penso que ficou a ganhar, e eu poderia ter regateado mais um pouco… Transportá-lo de bicicleta é que não foi nada fácil, e o vento não ajudava muito. Quando chego ao aeroporto, vejo, para meu desespero, que o voo atrasou… seis horas. Com este atraso, afinal acabou por não ser tão mau como isso. Deu-me tempo para ir ver uma cratera enorme. Apesar de esta cratera estar no meio da ilha, tem a particularidade de ter uma fenda que permite a entrada da água do mar. Este acidente geológico permitiu assim transformar toda a cratera em salinas. Aqui as pessoas podem também banhar-se e esturricar ao sol, sim porque nesta cratera não há um ventinho, e a temperatura é altíssima. Mesmo assim, lá estão as pessoas a destilar ao sol. No aeroporto, para passar o tempo, meto conversa com os taxistas. Dizem-me que, com o turismo, o negócio vai bem, mas também aumentaram os assaltos, a prostituição e a droga. Estes fenómenos levaram muita gente a sair para outras ilhas. Por outro lado, vieram os Senegaleses e os Guineenses. O que os entristece mais, é o facto dos turistas virem à procura de sexo por dinheiro, e não para conhecerem um povo, a sua cultura.
Finalmente vou partir. Começo a lembrar-me que tenho família, amigos e casa, e ainda o casamento de um grande amigo, amanhã. O avião levanta, fecho os olhos e recordo os maravilhosos momentos passados, as pessoas, os vales, as praias, a comida.....




Agradecimentos à Deolinda, por me ter acolhido, Ana e Kikas, por terem ido levar e trazer do aeroporto e terem guardado o carro.
Agradecimento aos amigos:http://www.caminhosdanatureza.com/