sexta-feira, 19 de setembro de 2008

EQUADOR

Crónica de uma viagem ao Equador. (clicar nas fotos para ampliar)

Porquê o Equador?
Há cerca de seis anos quando desfolhava uma revista da National Geographic, deparei-me com
uma foto do vulcão Cotopaxi ao nascer do sol. Desde essa altura que essa foto me “martelava” na cabeça e este ano tinha que ser, tinha que lá ir.

Tal como Portugal está para a Europa, na perspectiva americana (é considerado uma província espanhola), também penso que se passa o mesmo ao contrário, ou seja, quando comento que vou de férias para o Equador, a primeira pergunta que me fazem é: para que parte da linha do Equador?
O país Equador não é só passado por uma linha que separa o Norte do Sul do hemisfério. O
Equador tem uma cultura milenar, desde há cerca de seis mil anos, com povos como os Valdivia, passando pelos Chorrera, até chegar aos Incas, que curiosamente só estiveram no Equador cerca de cem anos antes do período em que Pizarro e sua armada de cavaleiros os dizimaram. No entanto, o legado cultural e arquitectónico foi mais que muito e perdura até hoje principalmente com a língua Quichua, que é falada por uma boa parte da população.
O Equador é dos países do mundo com a maior biodiversidade de plantas e animais. Consta que este pequeno país tem mais espécies que toda a América do Norte e Europa juntos. Para esta confluêcia de factores, contribuem as florestas húmidas ocidentais, as florestas húmidas do Amazonas, as florestas das altas montanhas, a cordilheira dos Andes, com dez picos com mais de 5000 metros de altitude, e, por
fim, as ilhas Galápagos, que são o ex-líbris do Equador e que fazem com que este país seja muito conhecido em todo o mundo.
Após onze horas de viagem, e mais cinco horas de escalas, chego a Quito. Apanho um táxi e vou o mais rapidamente possível para o único local que tinha feito reserva para dormir. Durante a viagem, pergunto ao condutor o porquê de não parar nos sinais luminosos. Ele responde-me que não pára para não ser assaltado, e mais, disse que é a própria polícia que o recomenda.
Não podia ter escolhido melhor local para dormir. Acordar, tomar o pequeno-almoço e ver o nascer do sol nos picos com mais 4000 metros, em redor de Quito, no terraço da residencial, foi algo que me fez sentir que estava verdadeiramente de férias.

Durante a manhã, faço uma pequena visita à parte histórica. Quito é uma cidade com cerca de 2.5 milhões de habitantes, ou seja, tem cerca de 20% da população do Equador. Como quase todas as cidades da América do Sul, só se pode andar tranquilamente de dia, de noite é imprescindível ir de táxi quando nos queremos deslocar. Quito está situada no corredor dos vulcões e é a segunda capital mais alta do mundo, a cerca de 2850 metros de altitude. De facto, sinto os efeitos desta altitude quando tenho de correr para não ser atropelado por um carro. Além do susto, a altitude em que me encontrava manifestou-se também na respiração.
Toda a parte velha da cidade tem bem marcado o colonialismo espanhol. No entanto, ao deambular pelas ruas, vê-se um colorido humano muito bonito em contraste com o estilo ocidental. Cruzam-se os equatorianos, que se vestem como ocidentais, e as indígenas, com as suas vestes características, carregando mil coisas à cabeça, que para mim parecia quase impossível, caso tivesse que ser eu a carregar tudo aquilo.
Passadas algumas horas, estou um pouco saturado de estar em Quito. O trânsito é infernal, autocarros velhos e milhares de táxis tornam o ar irrespirável. Se a tudo isto, juntarmos a altitude em que se encontra a cidade e o facto de não haver vento, temos a explicação para que a cidade, ao meio-dia, tenha uma camada de fumo, tornando o ar muito “pesado”. Só para dar um exemplo, quando me desloquei de táxi para o terminal de autocarros, passo por um túnel e ao sair, respiro com bastante dificuldade, tendo em conta que estava a sufocar e a fazer uma apeneia devido ao intenso fumo que aí se concentrava. Decidi que não queria ficar mais tempo nenhum na cidade.
No terminal de autocarros, a confusão é mais que muita. Vendedores de bilhetes berram para chamar a atenção dos destinos que vendem. Perguntam-me onde quero ir, só que ainda não decidi. Entretanto, olho para uma “barraquinha”, que vende bilhetes, e vejo anunciado Puerto Quito, consulto o mapa e vejo que esta pequena vila está na parte ocidental do Equador, nas florestas húmidas. É mesmo isto! Compro o bilhete e corro para apanhar o autocarro, que já estava de partida.
No Equador, em quase todos os autocarros que andei, tive que entrar e sair do autocarro em andamento, nunca param para não perderem tempo, e sinceramente não sei como não me estatelei no chão em algumas ocasiões.
Andar de autocarro no Equador é uma aventura, sempre em alta velocidade. Os motoristas ultrapassam em qualquer curva ou descida, desde que haja espaço, de resto, com mais ou menos folga, o autocarro passa sempre.
Inicialmente, vou como os Flinstones, ou seja, com os pés sempre a fazer pressão no chão do autocarro, a travar (como se valesse de alguma coisa), mas depois, com o tempo, descontraio e aprecio a paisagem, ao longo da viagem, que aliás é fabulosa. Só quando olho pela janela e não vejo o caminho, apenas vejo precipícios enormes, é que as minhas pulsações sobem um pouco.

Após três tortuosas horas, chego a Puerto Quito. Quando saio do autocarro, sem saber bem porquê, recordo-me da minha
osteopata, com quem tive consultas há dois anos, pois tenho a coluna feita num oito. Puerto Quito fica a cerca de 600 metros de altitude. A humidade é um pouco insuportável. Nesta aldeia não se passa mesmo nada, para além de ser um ponto de passagem, encontram-se algumas lojas onde se vende praticamente tudo. Como são quatro da tarde, começo a pensar num local para pernoitar. Vou até uma taberna, meto conversa e pergunto se há por ali algum local para dormir. Informam-me que há por lá um biólogo americano, que criou uma reserva e que dispunha de quartos para alojamento e que fazia ainda visitas guiadas à floresta húmida. Era mesmo isto! O problema é que ninguém me conseguia dizer ao certo onde era. Consigo o número de telefone dele e ligo-lhe. Falo então com o americano, de nome Raul, que quando me pergunta quantas pessoas são e eu respondo que era apenas uma, deixa subitamente de ter camas disponíveis para dormir...
Continuo à procura. Entretanto, encontro um homem, que me diz que a tia dele tem umas cabanas para pernoitar. Oferece-me boleia na mota, que dali a pouco deixa de ter força para subir. O caminho, além de ser bastante íngreme, é também muito lamacento. Mais um pouco a pé e chego a uma casa onde estava a senhora Ayála. Fico aliviado, tem comida e sítio para dormir.

Para chegar ao local da pernoita, tenho de andar mais cerca de uma hora.
A humidade é insuportável e o caminho continua muito acidentado e lamacento. Até a senhora Ayála, que faz este caminho há mais de cinquenta anos, reclama, pois está cansada de fazê-lo a pé nestas condições.
Finalmente chegamos a uma casa, mas ainda não é aqui que vou dormir. Depois de beber uma limonada fresca, tenho de andar mais um pouco até chegar à cabana. Os meus olhos e ouvidos regalam-se com a vegetação luxuriante e os sons intensos dos animais e mais ainda com a cabana onde vou dormir. Assente em cima de estacas, por causa das inundações e dos animais, a cabana é muito simples com duas camas, uma retrete e um chuveiro improvisado num anexo ao ar livre.
Depois de um duche, estou todo suado outra vez, a humidade é insuportável. Começa a chover. Tomar um duche de chuveiro ou à chuva não é muito diferente, a temperatura da água é exactamente a mesma.
Antes de jantar, o filho da senhora Ayála, Darwin, dá-me uma lição de botânica sobre uma enorme quantidade de plantas, sobretudo sobre as suas aplicações terapêuticas. É curioso que ele tem o mesmo nome do famoso biólogo, Charles Darwin, que deu a conhecer ao mundo o arquipélago das Galápagos.
À noite janto com a família.

Tal como nesta família, quase todas as pessoas desta zona praticam uma agricultura de subsistência, dedicando-se essencialmente à cultura de cacau e café, não deixando de ter ainda algum gado e árvores de fruta.
Depois do jantar, vou para a cabana e apesar da escuridão da noite, consigo orientar-me no meio da floresta. Muitas pessoas ficam apavoradas por caminhar à noite, mas eu simplesmente adoro, especialmente com chuva e com ruídos estridentes de animais que desconheço e que nem sequer nunca os vi. Mesmo com aquele ruído intenso dos animais durante toda a noite e da chuva, dormi cerca de onze horas. Em Portugal, mesmo que quisesse não o conseguiria. A directa da viagem e ter dormido somente três horas em Quito, fizeram mossa. Arrumo as minhas coisas e vou tomar o pequeno-almoço com a família. Os pequenos-almoços no Equador agradam-me bastante: começo sempre com uma salada de fruta, depois doce com pão, e para finalizar uma omeleta sempre acompanhada de sumo natural.

Este local é fabuloso, mas não quero ficar aqui mais dias. Dentro de dois dias vou começar a fazer caminhadas, acima dos 4000 metros, e eu estou demasiado baixo, necessito começar a aclimatização.
Despeço-me da família e retomo o caminho até Puerto Quito. Volto a falar com as mesmas pessoas de ontem enquanto espero pelo autocarro, que não demora muito tempo a aparecer e a apitar imenso para sinalizar a sua presença e para que as pessoas se apressem.
A minha ideia inicial era regressar a Quito, passando pela La Mitad Del Mundo, e apanhar posteriormente um autocarro até Otavalo. Dizem que é uma cidade muito típica mas também muito turística.

Duas horas e meia de autocarro depois, estou em La Mitad Del Mundo. Foi aqui que, em 1736, Charles-Marie de la Condamine provou que a linha do equador passava por ali. A sua expedição também quis provar que o mundo não era redondo, e foi graças às suas medições que surgiram novos sistemas métricos de referência.
Como é natural, construíram neste local um monumento e alguns museus para os turistas lá irem tirar algumas fotografias e deixarem alguns dólares… E eu também, como não poderia deixar de ser, embarco na onda.
Medições recentes, com ajuda do GPS, mostram que a linha do equador passa 240 metros ao lado onde está actualmente marcada a linha e o monumento, mas é claro que isso não conta, o que conta para o comum turista, como eu, é este local.

Não deixa de ser curioso estar com um pé no Hemisfério Norte e o outro no Hemisfério Sul.
Após uma breve visita, almoço por ali. Eu que não costumo comer fritos, caio na asneira de comer umas batatas fritas bem oleadas, o que me provoca de imediato uma terrível indisposição. Como não me apetece andar de autocarro para fazer mais duas horas de viagem, mas também não quero ficar parado, junto-me a uma pequena excursão para ir visitar umas ruínas arqueológicas e um miradouro ali perto, a cerca de 5 km.
Quando chego ao Mirador de Ventanillas, fico deslumbrado com a vista. À minha frente tenho uma enorme cratera do extinto vulcão Pulalahua (“nuvem de água”, em Quichua). Parece que o vulcão colapsou há cerca de 2500 anos. No centro da cratera existe um cone, de nome Loma Pondoña, com 2975 metros. Tudo o que eu vejo à minha frente pertence à Reserva Geobotânica Pululahua.
Enquanto estávamos a ouvir a ladaínha do guia a dizer que tiveram de monitorizar o vulcão
devido ao registo de alguma actividade, que de noite se encostarmos o ouvido ao chão escutamos o rumor da terra, que é a única cratera habitável em todo o mundo (embora eu conheça mais três: uma nos Açores e duas em Cabo Verde), que as pessoas duram quase até aos 100 anos, há algo que menciona que me interessa muito, que existe por ali perto um pequeno Hostal.
Enquanto ele continua com a sua história, já eu estou a tirar da mochila os bastões de caminhada.
- Kaya Kaman (Quichua) ou hasta otro dia (castelhano) - aí vou eu!
Meto-me pelo trilho muito íngreme, que me levaria à base da cratera. Enquanto desço, olho por duas vezes para trás, e o guia e as pessoas ainda lá estão a dizer-me adeus, um pouco incrédulos com a minha rápida decisão. Nem imagino o que lhes vai na cabeça a meu respeito.
Quando chego à base da cratera, esta parece-me bastante maior.
Finalmente chego ao Hostal, que pertence a um casal equatoriano. Renato e Paola viveram muitos anos nos EUA, regressaram e compraram o terreno com uma casa abandonada. O
trabalho que eles têm feito é notório, não só por recuperarem a casa, mas também pelas preocupações ambientais que manifestam. Fizeram um levantamento da fauna e flora existente nesta reserva e mapas com percursos pedestres, de bicicleta e a cavalo. Praticam uma agricultura sustentada e ecológica, onde os géneros alimentares que se retiram da terra são para consumo exclusivo do Hostal, ou seja, o que ali se come é proveniente do próprio terreno.
Neste momento, tal como eu, estão a projectar instalar painéis foto-voltaicos. Inevitavelmente trocamos muitas ideias. Ao jantar, para além da companhia de Renato e Paola, tenho também três biólogas americanas (Sarah, Caroline e Solveig), que já estão a viajar há cerca de três meses pelo continente sul americano, e que já aqui estão há alguns dias. Como tema de conversa para o jantar, optámos por falar mal do Bush (para minha satisfação).
Já com uma boa noite de sono, planeio fazer uma caminhada na cratera e contornar o cerro Pondoña. Entretanto, as americanas e Paola vão andar de cavalo. Convidam-me, mas eu tenho uma conversa com os meus botões e penso que elas devem ter muita experiência nesta actividade, e eu ainda estou na fase em que o magnetismo da terra exerce muita força sobre mim, fazendo sempre actuar a lei da gravidade, como tal, é melhor manter os pés bem assentes na terra. Depois de as ver a montar, fiquei feliz por perceber que tomei uma decisão mais do que acertada, as “amazonas” montam muito bem.

Inicialmente, o caminho é pelo meio dos campos, que estão prestes a receber as sementeiras, pois aqui fazem
-nas durante os solstícios (21 Setembro e 21 Março). Os terrenos são muito férteis, ao ponto de fazerem duas colheitas por ano sem ser necessário usarem adubos. Toda a cratera está dividida em parcelas de um hectare, o que perante estas áreas a agricultura é de subsistência.
Os campos cultivados dão lugar ao bosque e a um trilho. A erosão causada pelo homem, ao longo dos últimos 1000 anos e pela água, fez um trilho bem escavado no chão com partes em que este tinha mais de três metros de profundidade. Isto e o facto de o trilho estar ladeado de floresta virgem e altas montanhas, faz com que este local ofereça um cenário absolutamente esplendoroso.
Depois uma hora a serpentear por este trilho, percebo que estou no caminho errado, ou seja, estava a subir demasiado e para o lado errado. Retorno e depois de algum tempo encontro o trilho correcto.
Mais uma hora passa e o trilho dá lugar a um caminho. Chego à base do cone Loma Pondoña. Aqui a vegetação é mais rasteira, toda esta zona foi destruída por uma derrocada de pedras, que destruiu também uma pequena aldeia.
Uns quilómetros mais abaixo, existem umas piscinas naturais com águas termais quentes, o que é bem tentador, mas para lá chegar precisaria de mais três horas e hoje ainda tenho de ir para Quito.
De volta ao caminho, passo por alguns campos agrícolas e também por uma casa , que ao que parece, era onde os espanhóis torturavam os nativos. Mais outra hora e estou de volta ao Hostal.
Entretanto as “amazonas” já tinham regressado, fizeram o mesmo percurso que eu, mas nunca as vi, muito provavelmente devem ter passado por mim quando me enganei no caminho.
Almoço com as americanas e com mais um casal, proveniente da Alemanha, que entretanto tinha chegado.
Tenho de partir. Este local vai deixar-me algumas saudades - as pessoas, a comida, a vegetação primitiva, podia estar aqui mais uma semana que tinha muitos trilhos centenários para percorrer, mas tenho de partir. Despeço-me e retomo ao trilho que tinha feito para chegar à cratera.
Enquanto subo, passa um homem com um cavalo e uma vaca. Falo com ele, distrai-se um pouco e o cavalo e a vaca fogem. Este desata a correr pela montanha abaixo no meio das pedras a gritar, em Quichua, provavelmente um rol de todas as asneiras em língua inca.
Durante a subida cruzo-me com alguns nativos. As pessoas desta zona são de uma estatura muito baixa. A média de longevidade das pessoas, pelo contrário, é muito alta, são muito resistentes.

Para além deste trilho íngreme, existe uma estrada em terra para aceder à cratera, só que esta tem cerca de 20 km, por isso este trilho é a principal porta de acesso. Uma professora originária de Quito faz este trilho todos os dias para dar aulas na pequena escola daquela localidade.
Estou quase a chegar novamente ao colo Mirador de Ventanillas e oiço um homem a praguejar. É o homem do cavalo e da vaca com uma vara na mão a dar açoites nos animais. Passa por mim a todo “gás” e quase que a vaca me dá uma cornada.
Chego ao colo e encontro o guia do dia anterior, com mais um grupo e com o mesmo discurso. Vê-me e fica todo curioso. De repente, vejo-me a fazer de guia e a contar o que se encontra no entorno desta cratera.
O guia oferece-me boleia, mas tenho de esperar um pouco. Fico à conversa com uma francesa, que está a um dia de completar as suas férias, só que estas já têm um ano, pois anda a dar a volta ao mundo. Vai voltar a França mas quer ir viver para o Haiti.
Depois da boleia até à La Mitad Del Mundo, volta o “stress” dos autocarros. Os suburbanos têm
uma particularidade: os motoristas ganham consoante o número de passageiros que conseguem apanhar e isto faz com que andem sempre a ultrapassar-se uns aos outros a alta velocidade. No meio desta correria, como habitualmente, as pessoas entram e saem com o autocarro em andamento. Entram vendedores ambulantes com tudo aquilo o que se possa imaginar, e com o deambular do autocarro tornam-se em verdadeiros equilibristas para se manterem em pé.
Em Quito vou voltar a dormir no mesmo sítio da primeira noite em que cheguei. O Secret-Garden é um local muito acolhedor e simpático, os quartos e salas foram pintadas pelos clientes, tornando o local bastante familiar e agradável. Encontro aqui pessoas de todo o mundo.
Por um acaso, conheço os donos, ele, equatoriano, e ela, australiana. Ao jantar, a conversa andou um pouco à volta da economia do Equador, aquando da grave crise em 1998, e sobretudo o impacto que teve a introdução do dólar americano como moeda oficial no Equador.

Hoje vou começar as caminhadas de aclimatização, para me preparar para tentar subir o Cotopaxi e o Ximborazo. Como se trata de alta montanha e torna-se muito perigoso fazê-la sozinho, contactei uma agência de actividades nesta área para que eu fosse inserido num grupo e, claro, com guias. Normalmente sou eu que faço de guia em actividades de montanha, mas desta vez vai ser ao contrário.
O ponto de encontro é à entrada do Secret-Garden e pelos vistos não sou o único que espera
boleia. Ali estava também um dinamarquês que vai fazer parte do grupo. Apesar de ser dinamarquês, actualmente trabalha e tem uma firma de informática na Alemanha. De constituição forte, Anders, já percorreu meio mundo e muitas montanhas.
Enquanto nos apresentamos, aparece a carrinha com o resto do grupo, o guia e três espanhóis. O guia Franklin, o casal valenciano, Carlos e Teresa, e a catalã Sílvia.
Tal como eu, Carlos é um amante do BTT, enquanto Teresa gosta mais de montanhismo. Sílvia, desde que descobriu os prazeres de andar nas montanhas, não quer outra coisa. No ano passado, esteve na Bolívia e no Peru onde fez alguns picos e a fantástica cordilheira branca. Sílvia já cá está há cerca de uma semana e já tentou fazer o difícil pico Cayambe, com 5790 metros, mas não
conseguiu devido ao mau tempo. Estes três espanhóis têm uma experiência em comum, apesar de nunca se terem conhecido, tinham estado a fazer o Monte Branco como preparação antes de vir para o Equador.
A carrinha levou-nos até à entrada do refúgio de vida silvestre Pasachoa. Esta reserva está situada nos flancos do lado norte do extinto vulcão Pasachoa com elevações desde os 2900 até aos 4200 metros.
Inicialmente a caminhada é no meio da única floresta húmida, intacta na zona do corredor dos vulcões. A vegetação é simplesmente luxuriante, com flora que vai desde árvores nativas coníferas às delicadas orquídeas. Só nesta pequena reserva existem mais de cem espécies de aves.
O trilho é bastante escavado no terreno a vegetação extremamente cerrada e em algumas partes
é tão cerrada que dá a sensação que está a anoitecer. Após duas horas, a vegetação cerrada vai dando lugar a algumas clareiras e depois a uma vegetação rasteira.
O grupo é divertido, só Anders é mais reservado e a comunicação torna-se difícil, uma vez que a língua predominante é o “portuganhol”.
Nesta fase a vegetação é mesmo rasteira mas muito verde. Estamos a subir ao longo da crista, as vistas são fabulosas. Não tarda muito e estamos quase no pico… quase, porque para lá chegar temos de fazer um passo de escalada nada fácil.

Como não temos material de escalada, decidimos entre todos que ficamos por aqui. Fico com vontade de continuar, a parede não me parece muito difícil, mas o bom senso diz-me para não me cansar e não arriscar muito. Para o primeiro dia não está nada mal, fizemos, dos 2900 aos 4000 metros, cerca de 1200 metros de desnível de subida. O ritmo de subida foi muito bom, só o nórdico me pareceu um pouco ofegante na zona da floresta, mas é natural porque fazia algum calor e havia alguma humidade. A descida é feita muito rapidamente, rápida de mais para o meu
gosto, não quero forçar os meus joelhos, Sílvia também reclama, está um pouco cansada, o que é natural, afinal de contas tinha estado há dois dias a tentar subir o Cayambe.
A meio da tarde estamos de volta à carrinha, que nos vai levar de volta a Quito.
Desta vez em Quito, fico num hotel com o resto do pessoal. À noite vamos jantar a um restaurante bem perto do hotel e vêem-se muitos seguranças armados. Este quarteirão é o único onde se pode andar com alguma segurança. Sílvia diz-me que há três noites atrás já a tinham tentado assaltar, valeram-lhe as pernas para correr e fugir.

Hoje vamos fazer o vulcão Pichincha. É um vulcão activo e fica mesmo junto a Quito. Este vulcão tem um currículo de destruição impressionante. Em 1660, uma forte erupção cobriu Quito, deixando a cidade com 40 centímetros de cinza. No século XIX registaram-se três violentas erupções e mais recentemente, em 1999, o vulcão expeliu uma nuvem de fumo, com cerca de 18
quilómetros de altura, cobrindo a cidade de cinzas. Este vulcão tem dois picos: Guagua Pichincha, com 4784 metros, e Rucu Pichincha, com 4698 metros (respectivamente “vulcão criança” e “vulcão homem velho”, em Quichua). O pico que vamos fazer é o Rucu, pois o Guagua está activo e é necessário dois dias para lá chegar.
Assim, primeiro temos que apanhar o teleférico que nos vai levar até aos 4100 metros de altitude (actualmente é a jóia da coroa de Quito, mas também consta que é o CCB ou a casa da Casa da Música equatoriano, em termos de derrapagem financeira).
Inicialmente o caminho é bom, sem uma inclinação muito acentuada, as vistas também são deslumbrantes, mas não por muito tempo, pois as nuvens sobem muito rapidamente pelas encostas da montanha, sinal que iremos ter chuviscos e vento.

Inicialmente encontramos alguns acampamentos de pastores, que estão por ali com os seus rebanhos, manadas e cavalos, também os trajes dos vaqueiros são bonitos e dás-lhes um ar muito arranjado. Como era de prever, o tempo fecha e a temperatura cai bastante, devem estar cerca de 2ºC. Começa a chuviscar, chuvinha que passa a granizo e empurrada pelo vento torna-se muito desagradável.
Durante a subida encontro o casal alemão com quem tinha estado em Pululahua.
Os últimos 200 metros de desnível são bem inclinados. Inicialmente fazêmo-los em terra vulcânica, muito macia, em que a progressão é muito lenta e depois, com alguma escalada pelo meio, a altitude já começa a notar-se, e bem, tornando os nossos movimentos ainda mais lentos e
pensados.
Finalmente o cume. A visibilidade é nula. Sinto-me bem e sem frio. Teresa está bem, ela é muito forte. Carlos tem as mãos geladas e diz-me que sofre sempre muito quando faz ski. Sílvia, com a sua boa disposição de sempre, canta e dança, queixa-se que tem sempre problemas de temperatura corporal nas extremidades, mãos e pés. O nórdico Anders parece-me bem fisicamente, mas tenho dúvidas quanto à sua condição física para os dias seguintes. Para o nosso guia Franklin, habituado a estas altitudes, este é seguramente um passeio de fim de tarde.
Esta montanha é a que tem mais turistas, e por isso mesmo é onde ocorrem mais acidentes e muitos deles acabam mal. Como é muito perto de Quito e tem teleférico, há muita gente mal preparada que se arrisca por ali, com pouco ou nenhum equipamento. Este “facilitismo” torna esta montanha a mais mortífera do Equador. De facto, quando desço, tenho a oportunidade de constatar o quanto as pessoas estão mal equipadas.

Tal como ontem, Franklin impõe um ritmo muito forte a descer, mais uma vez Sílvia e eu ficamos para trás, queremos poupar ao máximo os joelhos.
A descida no teleférico é morosa, primeiro porque está muita gente e depois, quando estamos dentro da cabine a descer, o teleférico pára. Ficamos ali suspensos a cerca de 500 metros de altura do solo. Por muito que brincássemos com a situação, o nervoso miudinho começava a assomar as nossas mentes.
Mais uma vez vamos ficar no mesmo hotel e, tal como ontem, jantamos por ali perto. É o último dia que vamos ficar em Quito. Até agora, as montanhas, que já tínhamos feito, tinham sido meras "borbulhas”, mas a partir de amanhã, aí sim, as dificuldades iriam ser outras com as montanhas que seriam de mais de 5000 metros.

Passámos esta manhã a preparar o equipamento e a carregar a carrinha que nos vai levar até ao acampamento base a 3900 metros. O guia é outro, Fredy. Tem uma fisionomia tipicamente andina: estatura baixa, olhos e boca rasgados, bastante moreno e bastante robusto, tão robusto que deixa as senhoras do grupo de olhos arregalados. Segundo se diz, é um dos mais fortes e um dos melhores guias dos Andes, pois já fez resgates quase impossíveis de pessoas, tanto na selva como nas montanhas.
Após uma hora na estrada, entramos num caminho em muito mau
estado, mas a Ford, com cerca de quinze anos e com 300 cavalos, não se nega a nada, trepa tudo. Claro que somos várias vezes projectados para os lados e para cima, nada a que não estivéssemos já habituados.
Depois de mais uma hora e já muito “amassados”, chegamos ao nosso destino. O local do acampamento é fabuloso, com paisagens lindíssimas. Contudo, o que se avista do cume não é nada agradável, as nuvens passam a alta velocidade, o que é muito mau sinal. Montamos o acampamento. Entretanto, chega um casal de Santander, Teresa e
Alberto. Contam que apanharam um tempo horrível, com muito vento e neve, e que a própria progressão foi de tal modo difícil, devido à neve estar muito mole, que tinha sido impossível chegar ao cume.
O resto da tarde é passada simplesmente a olhar para o horizonte, para “esvaziar” a cabeça das “mesquinhices” que por vezes nos inquietam. Sou interrompido por uma violenta trovoada que se aproxima e que nos obriga a recolher para dentro das tendas.
É uma da manhã, saio para ir à casa de banho (ao ar livre), o céu está totalmente estrelado e a
temperatura caiu muito. É muito bom presságio. Às quatro da manhã, as tendas estão totalmente geladas, pois devem estar uns -5ºC. Um bom saco-cama de -20ºC foi fundamental. Para variar, Sílvia queixa-se do frio, ela pode dormir com o melhor saco-cama, com uma tonelada de roupa e continua a ter frio, sinceramente não imagino o que ela deve sofrer.
Tomamos um pequeno-almoço reforçado e partimos. Ainda é noite, mas como o céu está estrelado e existem restos de neve no chão, isto faz com que haja alguma claridade, o que nos
permite ver na perfeição o Elinisa Norte, com 5126 metros e o Elinisa sul, com 5248 metros. Em tempos, estes dois picos eram um só, mas o colapso da montanha, devido à actividade vulcânica, deu-lhe o actual relevo. Toda esta zona pertence à reserva ecológica Los Elinisas. O pico que vamos fazer é o Elinisa Norte. O Elinisa Sul é muito técnico e é necessário mais de um dia para o fazer.
O chão está totalmente gelado e mais uma hora passa e começa a nascer o sol.
Em todas as viagens que tenho feito, nunca me deparei com um cenário destes. A vista é simplesmente deslumbrante. Em baixo, estão algumas nuvens onde no meio aparecem muitos picos acima dos 4000 metros. De frente, sobressai o maior de todos, e o que está mais perto, o vulcão Cotopaxi, com as suas neves eternas.
Este momento paga totalmente (e que mais fosse) o bilhete da viagem. A subida prolonga-se por mais cinco horas, lenta e cada vez mais inclinada. A neve está pouco macia, o que dificulta a progressão, mas como o dia está excelente, estas pequenas dificuldades pouco influenciam o nosso estado psicológico.
Os últimos 200 metros de desnível são bastante inclinados. O forte vento de ontem esculpiu o gelo de uma forma espectacular com formações absolutamente extraordinárias.
Finalmente o pico! A vista é fabulosa, indescritível. Gostava que todos os meus amigos estivessem aqui para partilhar comigo este momento. Como isso não é possível, partilho-o com os meus novos amigos, e aproveitamos inclusivé para cantarmos os parabéns a Anders. Feliz da vida, diz que é a melhor prenda que poderia ter, e eu acredito plenamente.
A parte inicial da descida é um pouco perigosa e como é uma zona de avalanches, temos de esperar porque vêm mais dois grupos para cima. Para além das avalanches, a passagem é muito estreita e o cruzarmo-nos com outras pessoas, obriga-nos a montar segurança.
Ao princípio da tarde, chegamos ao acampamento. Tal como nos dias anteriores, poupei-me bastante na descida, tenho algumas dores de cabeça, o que não é nada normal, e não sei se será da descida ou se da falta de comida.
Desmontamos o equipamento e lá vamos nós outra vez pelos caminhos tortuosos. Eu e o Carlos temos o mesmo pensamento: “que falta fazem aqui umas bicicletas, pois seria bem mais confortável e divertido”. Silvia é que não se importa, dorme… Nem sei como consegue.
Paramos para comer uma deliciosa sopa e para logo de seguida nos metermos na famosa estrada Panamericana e continuarmos para o hotel Cuello de Luna. Este hotel fica junto à entrada do Parque Natural de Cotopaxi e tem uma vista privilegiada sobre o cone do vulcão Cotopaxi com os seus 5897 metros de altitude.

A seguir a um belo repasto e a uma boa noite de sono, estamos de volta do equipamento necessário para fazer a ascensão.
Vamos para o refúgio Jose Ribas a 4800 metros. Para lá chegar mais uma vez vamos ter de fazer duas horas por caminhos de terra com a carrinha. Inicialmente a paisagem é só de bosques (e até aqui o eucalipto já chegou), mas a partir dos 4000 metros a paisagem torna-se um pouco lunar devido à aproximação do vulcão. Enquanto caminhamos vamos passando por pedras enormes por ele projectadas. Apesar de estarmos ainda longe, não deixa de ser impressionante e assustador a força da terra. O Cotopaxi é um vulcão activo que, nos últimos séculos, tem registado varias erupções violentas, em que duas delas destruíram por completo a cidade de Latacunda. Neste momento é um gigante a dormir uma “siesta”, mas que poderá acordar a qualquer momento muito mal disposto, cujas fumarolas visíveis na cratera são disso indicadores
.
Aos 4000 metros, com uma temperatura de 5ºC, no meio do deserto, passamos por um campo de futebol, onde curiosamente está a Selecção do Equador a treinar. Penso logo que é um bom sítio para os meninos bonitos da nossa Selecção treinarem, só que aqui, metia-os a correr pelados, mas como estão sempre cansados com a vida social que têm, era melhor não!
Chegamos finalmente. Temos de nos equipar dentro da carrinha porque lá fora está um vento infernal, acompanhado de granizo.
Como a carrinha apenas consegue ir até aos 4600 metros, temos de fazer os 200 metros que faltam até ao refúgio com mochilas bem pesadas.
Normalmente até aqui vêm muitas excursões com turistas, e muitos deles aventuram-se a ir até ao refúgio, mas como não estão aclimatados demoram mais de uma ou duas horas para fazer um quilómetro e muitas vezes nem conseguem, ficando com dores de cabeça horríveis e com vómitos. A partir dos 3000 metros, uma
pessoa está sujeita, entre muitas doenças, a contrair duas das mais graves: edema pulmonar e edema cerebral, e ambas podem ser fatais. Como tal, torna-se necessário fazer uma adequada aclimatização com um bom descanso e uma alimentação equilibrada.
Finalmente chegamos ao refúgio, o tempo melhora um pouco. De início, tínhamos planeado ir fazer um pouco de escalada em gelo, mas como as condições climatéricas são muito adversas, vamos ficar no refúgio a descansar e a hidratar. Estar aqui neste refúgio não me deixa propriamente tranquilo, já foi destruído duas vezes por avalanches, sendo que uma delas matou todas as pessoas que lá se encontravam.
Voltamos a encontrar o casal de Santander e também o guia Edgar, que este ano já tinha estado com o nosso bem conhecido João Garcia. Para além deles, está a Andreia, do Panamá, e o Manoel, do Brasil. Este simpático casal tem como ocupação viajar, isso mesmo. Manoel, formado em medicina, já viaja há cerca de vinte anos.
Tem um currículo de viagens impressionante, conhece quase todos cantos do mundo, mas conhece muito mal o melhor canto, que é, claro, Portugal.
O grupo é muito animado, todos temos mil e uma histórias das nossas aventuras para contar, enquanto nos hidratamos com litros e litros de chá. A hora de recolher é pelas 19h e iremos despertar pela meia-noite.
Pressinto que ninguém consegue adormecer, a ansiedade é muita. Para ajudar, o vento sopra muito forte, fazendo com que as telhas de zinco abanem e façam um barulho contínuo e irritante.
É meia-noite, saltamos da cama que nem umas molas, quase ninguém dormiu, uns pelo vento, outros pelo frio. Comemos e bebemos, a esta altitude o nosso organismo não “puxa” mesmo nada, torna-se necessário
forçar a ingestão de alimentos.
Saímos pela uma da manhã, estão cerca de -10ºC, mas o vento acalmou um pouco e vêem-se os enormes glaciares. Está um silêncio de morte, estamos todos muito concentrados a caminhar, um passo de cada vez, muito devagar.
Os primeiros 100 metros de desnível são em terra vulcânica congelada até entrarmos finalmente no glaciar. Eu vou encordoado com Anders e o bem disposto Franklin, que entretanto se juntou ao grupo na noite passada com o guia Juan. Juan leva Teresa e Carlos, Fredy leva Sílvia, o casal de Santander vai com outro guia e finalmente Manoel e Andreia vão por conta própria, eles são muito experientes e têm percorrido os picos em todo o mundo, desde os Himalaias aos Andes.
A temperatura continua a cair, estão cerca de -15ºC e o vento aumenta de intensidade. Cada grupo segue o seu
ritmo, embora eu considere que os guias impõem um ritmo demasiado acelerado, parecendo que até fazem competição entre eles para ver quem chega primeiro com o seu grupo. Aos 5300 metros, o casal de Santander desiste de subir, penso que terá sido por ela que é menos resistente, ele pelo contrário é muito forte. Este ano já tinha feito sozinho o monte Mckinley no Alasca, que apesar de ter 6138 metros é considerado um dos locais mais frios do planeta com temperaturas médias de – 50ºC.
Anders preocupa-me um pouco, por várias vezes pára e está ofegante. Estas quebras de ritmo não me agradam nada. Mais uns metros e começa a cair de joelhos algumas vezes. Falo com Franklin,
pois o melhor é levá-lo rapidamente para baixo, não vale a pena continuar. Como o Carlos e a Teresa vão um pouco mais à frente, acelero o passo para os apanhar e juntar-me a eles, e apesar de estarem ali perto, parece-me uma eternidade chegar até eles.
Fredy e Sílvia vão bem mais à frente e como são só dois têm um ritmo mais constante. Manoel e Andreia, não sei onde estão.
A temperatura neste momento marca -20ºC, a visibilidade é zero e o vento está cada vez mais forte com rajadas que devem chegar aos 80 km/h.
Devemos estar a 200 metros de desnível de alcançar o cume. A progressão é muito lenta, quando o vento
sopra mais forte temos de nos baixar e fazer segurança para não sermos derrubados. A inclinação média da subida é de 50% e se não temos cuidado facilmente somos projectados para o abismo. Aparecer “congeladinho” daqui a uns mil anos não está propriamente nos meus planos.
Teresa sente-se bem, Carlos está um pouco cansado e com frio, eu, fisicamente estou bem e sem frio, mas um pouco apreensivo, nunca tinha enfrentado condições tão severas.
Continuamos, mas por várias vezes somos projectados para o chão e obrigados a segurarmo-nos com toda a nossa força. Olhamo-nos e, como que por telepatia, decidimos ficar por aqui. Não vale a pena continuar, o tempo está cada vez pior, e mesmo se chegássemos ao cume nem iríamos
dar por isso devido à visibilidade ser nula.
Mais à frente, vejo um espectro de duas pessoas debruçadas sobre o gelo. São o Manoel e a Andreia que se protegem do vento.
Começamos a descer muito lentamente e o vento massacra-nos constantemente.
São seis da manhã, e estamos quase a chegar ao fim do glaciar. Começa a amanhecer e o vento diminui bastante e para descomprimir um pouco tiramos as fotos da praxe e damo-nos conta da camada de gelo que temos na nossa roupa. O próprio Franklin nunca tinha visto nada assim. O cabelo loiro da Teresa, que estava
exposto, parecia esparguete. Entretanto, passa Andreia e Manoel, também eles vieram logo para baixo, tomaram a mesma decisão que nós.
Pelas sete da manhã, estamos novamente no refúgio.
Anders tinha tomado uns comprimidos para a dor de cabeça e estava a descansar. Nós estamos um pouco cansados, mas não desiludidos, fizemos o que podíamos… Continuar, teria sido uma loucura!
Ao longe, vislumbro a silhueta de Silvia e Fredy, e enquanto espero, aproveito para tentar tirar o gelo do equipamento. O meu casaco mais parece um glaciar, tenho de raspá-lo para tirar o gelo.
Chegam Silvia e Fredy, conseguiram chegar ao cume. Naturalmente, Silvia está feliz, diz que tinha de subir, custasse o que custasse. Na semana anterior, tinha tentado subir o Cayambe sem sucesso, mas este tinha de o fazer. Apesar de muito cansada não tem muitas mazelas, apenas os lábios gretados do frio e um tornozelo
todo inchado. Como ela própria diz, é uma cabeça dura. Diz também que se não fosse Fredy a segurá-la por várias vezes, tinha voado com o forte vento que fazia no cume.
O famoso cone perfeito do vulcão Cotopaxi com as neves eternas continua a ser utopia para mim e para todo
s os restantes, mesmo Silvia sabe que esteve no cume porque não havia mais nada para subir - a visibilidade era zero.
Arrumamos o equipamento e descemos para a carrinha.

De volta à Panamericana, o Fredy tem que mudar pelo caminho a correia de distribuição. Mas não tinha sido só este problema, já tinha furado um pneu e os piscas não funcionam. Reparo que ele, antes de travar, dá um ligeiro toque no travão para injectar o óleo na bomba do travão, para que depois possa travar decentemente. Mas a carrinha lá anda e não se recusa a nada.
O nosso destino é Baños, e significa isso mesmo, banhos. Esta pequena vila muito turística está num vale ladeada por picos verdejantes. Antes de chegarmos a Baños, passamos na base do vulcão Tungurahua (“pequeno inferno” em Quichua). De pequeno, pouco tem com os seus 5016 metros. Em 1999 teve a sua última grande erupção. Depois da morte de um australiano e de um equatoriano devido aos gases, procederam à evacuação de 20.000 habitantes de Baños e arredores. Somente passado um ano é que as pessoas poderam regressar aos seus lares. Ainda agora, passados todos estes anos, estão a recuperar pontes e estradas destruídas pela lava.
Aqui ficamos hospedados na confortável Hospedaje Higuerón. O dono, Navarrete, já foi um grande guia de montanha e neste momento dedica-se a fazer uns óptimos petiscos para satisfação das nossas barrigas, que vinham bem encolhidas depois da ascensão.

Ao fim da tarde, uns vão para as termas e outros vão passear pela vila. A princípio, era para ir para as termas, mas depois de ver a quantidade de pessoas que lá estavam para entrar, mudo de ideias. Baños é muito conhecida pelas suas termas de águas quentes devido à proximidade do vulcão. Prefiro ir dar um passeio a pé. Não durmo há mais de um dia mas sinto-me bem.
Como vamos passar mais um dia aqui, eu e Anders decidimos alugar umas bicicletas e dar um passeio.
Hoje Anders está um pouco irritado. Ontem, ao fim do dia, integrou uma excursão até a um miradouro para ver o vulcão em actividade, mas para seu azar o céu estava nublado. O pior é que a excursão levava apenas adolescentes e eles iam ficar lá por cima mais umas horas numa “party ”onde todos acabaram bêbados. Não imagino o “frete” que ele deve ter apanhado.
Alugamos umas bicicletas porque queremos descer o vale do rio Pastaza. Este rio está ladeado de verdejantes montes com muitas quedas de águas. Andamos alguns quilómetros e chegamos a um cruzamento que vai ter a um miradouro. Anders quer lá ir, está com a excursão “atravessada na garganta”. Advirto-o que para lá chegar tem de subir cerca de 1500 metros de desnível (o equivalente a ir da Covilhã à Torre, na Serra da Estrela). Se ele ontem já se encontrava menos bem, na subida ao Cotopaxi, e amanhã iríamos tentar subir o Chimborazo, que é bem mais difícil, seria uma enorme asneira, tendo em conta que ele não está muito habituado a andar de bicicleta.
Eu, que me sinto bem fisicamente, e o desporto para o qual tenho mais apetência física é andar de bicicleta, não me vou meter em grandes esforços para me poupar. Consigo demovê-lo desta ideia e lá vamos vale abaixo.
Cascada de Ulba e Cascada el Silencio são algumas das muitas cascatas que vamos passando. O trajecto é feito
maioritariamente por estrada, mas de vez em quando aparecem uns caminhos próprios para bicicleta. Na realidade, encontramos nesta zona imensos turistas a andar de bicicleta.
As vistas são de uma beleza indescritível especialmente enriquecidas pelo recorte do enorme rio Pastaza.
Ao longe começamos a vislumbrar a enorme Cascada Manto de la Novia com cerca de 100 metros de altura. Continuamos pelo vale até chegar finalmente àquela que é a maior de todas elas, a Cascada Pallon del Diablo. A queda de água é enorme e precipita-se num turbilhão espectacular. Descemos até à base da cascata e ficamos todos molhados, mas depois resolvemos ir até ao topo. Aqui encontra-se uma mini reserva ecológica, e como recepcionista está lá um tipo todo “pedrado”, que depois de um grande discurso lá nos deixa ir ver a reserva.
Pedalamos cerca de 40 km, sendo que uma grande parte do percurso é
a descer. Que me perdoem os meus amigos do pedal, do Núcleo Duro e o pessoal da Seita, pois sei que os vou aturar por isto que vou dizer, ou seja, para regressar optámos por apanhar boleia numa carrinha. Afinal de contas era um dia de relaxe.
À noite encontramo-nos ao jantar para contar as peripécias do dia. Carlos e Teresa foram numa excursão ao Amazonas e Sílvia alugou uma moto para ir passear também à floresta do Amazonas. Mais uma vez, o jantar é divinal. Aliás, tenho comido sempre muito bem, à excepção do restaurante em La Mitad del Mundo onde me senti um pouco mal. Sílvia, que é médica nutricionista, também o afirma. A comida é muito boa e o mais
importante é que vem nas porções correctas.

Estamos de novo na carrinha a caminho do Chimborazo que fica bem mais a Sul. As primeiras três horas são percorridas em asfalto muito esburacado. Mais uma vez, a paisagem é muito bonita, predominando por aqui campos de cultivo, os solos são muito férteis, embora nos últimos tempos, tem-se assistido ao abandono do espaço rural. Muitos emigram para as cidades e outros para o sul de Espanha, principalmente para a zona Almeria, onde existe um mar de estufas. Pelo que tenho visto, aqui a vida pode ser difícil, mas na cidade não será muito melhor, pois os “bairros da lata” de Quito são miseráveis. Também consta que em Espanha são muito explorados.
Pouco a pouco vamos estando mais altos, Baños fica a 1800 metros e o nosso destino é a 4800 metros. Na opinião de Carlos não devíamos ter dormido a tão baixa altitude, e eu concordo com ele.
Aos 4000 metros entramos no Parque Chimborazo. A partir daqui o asfalto dá lugar a um caminho de terra e a
mais uma hora dentro da carrinha. A sensação que tenho é que deve ser praticamente igual a estar dentro de uma máquina de lavar.
Tal como no Cotopaxi, tudo é muito árido. Vejo alguns lamas e questiono-me do que é que eles se alimentam.
Finalmente chegamos e o tempo está bom. Comemos no Refúgio Hermanos Carrel e preparamos o equipamento. Como estamos a 4800 metros, temos de fazer mais 200 metros de desnível até ao Refúgio Whymper. Durante a subida, passo por uma rapariga que vinha carregada com gelo. Desde a chegada dos espanhóis que os nativos sobem às montanhas para buscar gelo. Ainda hoje se mantém esta tradição, só que para beber um refresco com gelo do glaciar, paga-se e bem. Eu não terei esse problema, basta-me levar um sumo que durante a noite vai congelar facilmente.

A meio da subida, encontramos um memorial aos que morreram nesta montanha. Em redor deste monumento são já muitas as lápides com nomes de pessoas que faleceram, quase todas elas, devido às avalanches.
Somos muito pequenos e insignificantes diante da imponência da montanha e é muito importante não esquecer que o mínimo deslize pode ser fatal.
Voltamos a nos encontrar todos no refúgio, desta vez tínhamos mais uma simpática família japonesa, os pais e um filho.
O grupo é muito animado e estamos todos muito bem-dispostos especialmente porque o tempo vai estar bom.
O sempre bem-disposto Carlos não está muito optimista, sente-se um pouco cansado, Teresa sente-se bem, também Anders se sente bem e diz que desta vez não irá passar mal. Silvia
está um pouco cansada e com o tornozelo inchado e tem dificuldade em andar. Apesar disso quer subir, e para tal toma anti-inflamatórios, só que toma demais e fica um pouco eufórica, talvez a altitude também tenha influenciado um pouco. Estou a ver que os médicos a auto medicarem-se são um problema! Falo com Fredy para a tentar acalmar um pouco. Os guias são muito bons, mas por vezes têm alguma falta de sensibilidade – em certos casos pequenos problemas podem tornarem-se em grandes problemas.
O resto do pessoal, Manoel, Andreia, Teresa, Alberto e os japoneses, com uns nomes que nunca entendi, estão sempre bem-dispostos.
O pôr-do-sol sobre as montanhas e as nuvens, proporcionam-me momentos únicos, que jamais esquecerei.
Entretanto, conheço um bombeiro equatoriano que está num acampamento aqui perto em treinos de alta montanha. A primeira pergunta que me faz é se Portugal continua a arder. Fico estupefacto com a pergunta mas não deixa de ser uma pergunta lógica. A razão desta questão é porque ele já esteve em Portugal, não como bombeiro mas como músico. Era um daqueles músicos que andam no Verão, de cidade em cidade, com os trajes típicos do Equador a tocar para uma plateia, que até costuma ser numerosa, mas que depois não compra nada, nem um simples CD.
Vamos descansar pelas 18h. Mais uma vez, estou demasiado eléctrico para dormir. Para ajudar, algumas rajadas de vento assolam o refúgio fazendo estremecer o telhado de zinco. Vem-me à memória o mau tempo de Cotopaxi.
Começamos a caminhar. É meia-noite e o tempo não podia estar melhor, o céu está estrelado, a lua cheia e o mais importante é que não está vento.
Mas nem tudo corre bem. Franklin teve um acidente ontem e está internado no hospital, embora pareça que não é muito grave.
Eu vou com Juan e Anders. Como acho que o ritmo está um pouco forte, deixo-me ficar um pouco para trás.
Faço isto para que o guia diminua o ritmo e também para que Anders não se canse muito logo no princípio. À frente vai Alberto e o guia Edgar, a Tereda desta vez não vai, ficou no refúgio. De seguida os japoneses, depois Fredy, Teresa, Carlos e Sílvia. Manoel e Andreia não os vejo, muito provavelmente vão mais à frente.
Passa cerca de uma hora desde que partimos. Carlos desiste e desce, diz-me que está cansado.
Está uma noite fabulosa apesar dos – 12ºC. O luar sobre o gelo milenar faz reflectir o brilho dos cristais, um cenário maravilhoso.
Iniciamos a subida pelo glaciar até chegarmos à crista. As cascatas de gelo nos glaciares são espectaculares, chegam a ter mais de 20 metros de altura.
Desde que começamos, a média de inclinação é de cerca de 60%, com algumas partes em que nos obrigam a fazer um pouco de escalada. De vez em quando paramos para descansar. Vezes de mais para mim.
Aos 5600 metros Sílvia dá um grito de desespero, não pode continuar, está com muitas dores no tornozelo e
para ela se queixar é porque o caso é sério. Teresa está em dúvida se continua ou não, mas decide descer. O guia Juan leva-as para baixo e nós continuamos com o Fredy.
Os japoneses vêm lá atrás muito lentamente. Por outro lado, Edgar, Alberto, Manoel e Andreia vão bem mais à frente. Apesar ser de noite, existe bastante luminosidade devido à lua cheia.
O passo aqui é muito lento pois já estamos a cerca de 5800 metros. Durante a subida o silêncio é constante e só se ouvem os cranpons a enterrarem-se no gelo. Silvia disse-me que, nos momentos mais difíceis da montanha, faz contas de matemática, mas eu tenho de pensar noutra estratégia porque sou péssimo a fazer contas.

Normalmente a minha mente “esvazia-se” com a dimensão da montanha e aqui mais do que nunca. Apesar de estar a fazer um esforço sobre-humano, não trocava este momento por nada.
Estamos a cerca de 5850 metros e aquilo que temia aconteceu, Anders começa a parar demasiadas vezes e a cair. Está tonto, não podemos continuar.
Tenho vontade de seguir sozinho, sinto-me bem, um sinal disso é que tenho fome e sede. A partir dos 5000 metros normalmente os órgãos do nosso organismo não recuperam e funcionam mal, tal é o desgaste. No
entanto, é muito arriscado, os outros vão bem mais à frente e eu não conseguiria nunca chegar até eles. Se tivesse aqui Franklin poderia continuar.
Mas o importante é descer bem, para depois voltar subir bem. Não se pode facilitar minimamente, a montanha não permite qualquer erro, com a altitude normalmente perdemos a lucidez, de modo a conseguir avaliar os perigos, e é assim que os acidentes acontecem.
A descida é lenta e Anders está muito cansado, por vezes temos de montar pontos de reunião para descer com mais segurança. O gelo aqui é muito duro, mais parece vidro, e mesmo os cranpons não se cravam neste gelo milenar.
Durante a descida passamos pelos japoneses, continuam a subir, de “gatas”, parecem-me muito cansados. Questiono-me se o guia não tem a noção do mau estado em que eles se encontram, mas os japoneses
normalmente são persistentes e vão até ao limite!
Finalmente o amanhecer. Nesta fase a descida é menos complicada e como tal deixo-me ficar para trás para apreciar o nascer do sol. No horizonte, vislumbro um fenómeno que não é muito frequente. O Chimborazo tem um cone perfeito e como o sol nasce por detrás da montanha, a sombra é projectada ao longo do horizonte dando a sensação de ser outra montanha. Para completar a Lua cheia está por cima da sombra do cone. Este cenário dura poucos minutos, mas seguramente nunca o esquecerei. Mais tarde falo com Manoel sobre este efeito e ele, que já caminhou por muitas montanhas, diz-me que só por duas vezes assistiu a um
a coisa assim.
Finalmente chego ao refúgio. Os que desceram já estão “enrolados” nos sacos-cama. Eu não tenho sono e sinto-me bem mas um pouco frustrado, a minha vontade era de pegar na mochila e voltar a subir. Mas o mais importante é que regressámos todos bem.
Decido dar um passeio por ali perto e depois sento-me a olhar a montanha com os olhos vidrados nos gigantescos glaciares do Chimborazo (“mulher de gelo”, em Quichua). O pico Chimborazo com 6267 metros é o ponto da Terra mais afastado do seu centro, pois ela é mais larga na altura do equador. Por outras palavras é o ponto da terra mais perto do Sol e eu estive quase lá.
Passam duas horas e vislumbro Edgar e Alberto a descerem e mais atrás Manoel e Andreia.

Conseguiram chegar ao pico, fico feliz por terem conseguido.
Faltam os japoneses, pai e filho ainda não regressaram. A mãe, que ficou no refúgio, quase que abre um buraco no chão de tanto andar de um lado para o outro. Embora a comunicação não seja muito fácil, dei-lhe a entender que eles estavam bem, mas a realidade não era essa e eu tinha-a presenciado.
Mais uma hora e vejo-os ao longe na crista, vêm muito, mas muito devagar. Entretanto o vento e as nuvens voltam. Mais duas horas e finalmente chegam. Não conseguiram chegar ao cume. Estão em muito mau estado, têm as faces um pouco queimadas do frio, mas o pior é que um deles, segundo o guia, deve ter um edema pulmonar. No entanto, estão a sorrir.
Está na hora de partirmos e despedimo-nos do casal de Santander, do Manoel e Andreia. Estes fazem-me uma proposta de voltar ao Cotopaxi para voltar a tentar subir. Estou renitente, ainda tenho mais alguns dias, posso ir lá tentar, mas também posso voltar a apanhar o mesmo mau tempo. É um risco ir para Cotopaxi e, devido ao mau tempo, passar os restantes dias que estou no Equador num refúgio (depois já em Portugal comunico com Manoel e fico a saber que fizeram o cume com condições meteorológicas muito boas).
Decido não ir, ainda quero ir para a parte oriental para conhecer um pouco do Amazonas e também dos
nativos.
Ter estado sempre ligado a este grupo foi realmente muito bom, mas teve, no entanto, uma desvantagem do meu ponto de vista: interajo muito menos com os locais, o que para mim, de férias, é um complemento essencial. Entre nós fica a promessa de nos encontrarmos numa montanha qualquer em alguma parte do mundo.
Felizmente é a última vez que ando nesta carrinha. Fredy tem o pé muito, mas muito pesado a conduzir.
A carrinha deixa-me no terminal de autocarros de Ambato. A partir daqui vou andar sozinho, pois Anders parte daqui a dois dias, Carlos e Teresa partem amanhã, Sílvia vai para a Colômbia uma semana e eu parto à aventura para o Amazonas.

De Ambato até Baños é cerca de uma hora. Em Banõs penso nos petiscos de Navarrete, da Hospedage Higuerón, mas quando tinha descido o vale de bicicleta tinha avistado umas cabanas, junto à Cascada Manto de la Novia. Na altura imaginei que aquele local devia ser maravilhoso para descansar. De Banõs até à cascata
é mais meia hora. De bicicleta não me tinha apercebido o quanto a estrada é perigosa, por meio de túneis e precipícios o autocarro desce a toda velocidade.
No miradouro para a cascata aproveito para comer uma iguaria do Equador, que gosto muito e que nunca tinha experimentado noutro país, banana assada com queijo no meio. Uma delícia!
Não deixa de ser impressionante estar esta tarde a cerca de 1000 metros de altitude, a uma temperatura de 25ºC, quando esta madrugada tinha estado a 5850 metros e a temperatura devia rondar os -15ºC.
Para chegar às cabanas tenho de descer um trilho com cerca de 100 metros de desnível e depois atravessar a enorme ponte pedonal suspensa por cabos sobre o rio Pastaza. Apesar de ser um mero afluente do Amazonas,
aqui já é bem maior que o rio Tejo.
Marcelo Benitez é proprietário deste local e já aqui habita há muitos anos. Transformou este local no seu “Éden”, como ele diz. E tem toda a razão, este local é maravilhoso e tudo está muito bem cuidado. Marcelo é artesão e tudo o que faz, faz com pormenor, tudo é estudado e detalhado.
O forte rugido da água a precipitar-se de uma altura de 100 metros não me deixa indiferente. Acho que nunca tinha estado junto de uma queda de água com esta dimensão, e apesar de me encontrar a cerca de 50 metros de distância, chegam-me por vezes gotas de água provenientes da cascata. Aqui aproveito para explorar os trilhos em redor desta maravilha da natureza.
São oito da noite, já não durmo há cerca de quarenta horas. Depois de um belo jantar vou-me deitar.

Acordo sobressaltado, sinto a cabana a abanar e os cães da casa a ladrarem e mais ruídos estranhos. Só dormi meia hora, devo ter tido um pesadelo, volto a adormecer.
Passadas dez retemperadoras horas de sono, acordo e vou tomar o pequeno-almoço. Quando me sento a primeira pergunta da senhora é: Sentiste? E eu respondo: o quê? Tinha havido um tremor de terra, que foi forte mas de curta duração e os estragos foram felizmente muito poucos. Disseram-me também que se assustaram e saíram da casa a correr. Bem que podia ter ficado soterrado que, com o cansaço que tinha, não ia dar por nada. Lembro que esta zona fica somente a 50km do activo vulcão Tungurahua.
Arrumo as coisas e despeço-me do “Éden” e retomo a ponte e depois o trilho, só que desta vez é a subir. Não espero muito e já estou no autocarro a caminho de Puyo, que é conhecido por ser a porta de entrada da floresta amazónica. Durante a descida, vejo que houve alguns desmoronamentos de terras, provavelmente devido ao tremor de terra. Esta estrada está muitas vezes cortada devido a aluimentos de terras, por causa das fortes chuvadas, mas neste caso não tinha chovido.

Ao passar de autocarro, vejo que a cidade de Puyo é pouco atractiva e isso não me agrada nada. Saio do autocarro e não passa mais de cinco minutos e já estou dentro de outro autocarro com destino a Tena. Decidi não ficar mais tempo por ali.
Finalmente encontro um motorista de autocarro que anda devagar, ainda bem porque muitas vezes a estrada por onde passa está em mau estado. As vistas são soberbas, de um lado a floresta amazónica e do outro a cordilheira dos Andes.
Três horas depois chego a Tena, parece-me bem mais simpática do que Puyo.
Tena é conhecida por ser a embaixadora da selva, aqui ligam-se dois grandes rios, o Tena e o Pano. A cerca de 5 km está outro grande rio, o Jatunyacu. Estes três convergem a cerca de 6 km mais a jusante, dando origem ao rio Napo. Apesar da extensa dimensão, o rio Napo não deixa de ser igualmente um afluente do Amazonas.
Com tantos rios, Tena é um dos destinos predilectos para o rafting em toda a América do Sul, e eu pretendo fazer um ou dois.
Durante a tarde, dou um passeio no Parque Amazonas, que alberga inúmeras espécies de plantas e animais, e um deles até me prega um grande susto. Enquanto observava os tucanos e os papagaios, um macaco-aranha, que andava ali por perto, aproximou-se de mim. Só que aproximou-se demasiado e quando dou um pass
o para trás, piso-o, e o macaco dá um grito muito forte, pregando-me um susto de morte. “Raio do macaco”- pensei eu. Neste parque predominam os macacos, os tucanos, os papagaios, os javalis e as cobras bem grandes.
E acabo o dia numa esplanada em frente ao rio a comer burritos e ouvir música colombiana.
Estou à espera de boleia, pois ontem tinha conseguido contactar uma agência de raftings, que me iria levar para o rio Jatunyacu, O rio é de classe 3+ (escala de 0 a 5). O objectivo deste rafting é conhecer melhor a flora local, que de outra forma seria impossível de ver devido à densidade da floresta. Para além do guia do barco, tenho como companhia três americanos e dois equatorianos.
A descida do rio é tranquila, de vez em quando interrompida pelos rápidos e por uns bons mergulhos. As
vistas são fabulosas e a vegetação é mais uma vez luxuriante. Nas margens íngremes do rio, predominam as orquídeas. Ao longe, encontra-se a cordilheira dos Andes e no lado oposto estão umas nuvens de formação vertical sob o Amazonas, fenómeno que nunca vi igual em Portugal.
A meio da descida paramos para um almoço leve. À nossa espera estava um bando de miúdos brincalhões, que subitamente apareceram do meio da floresta. Só quando estava a acabar de comer é que me apercebi do motivo da sua presença. Estão à espera que acabássemos a refeição para depois comerem os restos. Fico logo sem vontade de acabar de comer, provavelmente já teria comido mais agora do que estes miúdos vão comer durante todo o dia. Só neste grupo estão pelo menos quatro irmãos, entre os 5 e 10 anos, que partilham ordeiramente a comida.
Deixamos os miúdos, que agora brincam nas margens do rio. Pouco ou nada têm, mas aparentam ser
felizes, vivem do que a floresta dá e pouco mais. O contraste entre estas crianças e as ocidentais é abismal. Têm tudo, tudo querem e pouco ou nada dão.
A descida do rio demora cerca de seis horas e acaba na pacata aldeia de Puerto Napo.
Regresso a Tena, e passo a resto da tarde numa esplanada a discutir sobre todo o tipo de coisas com os locais. Noto que aqui a política é, de certa forma, um pouco tabu.
À noite reparo que tenho um derrame no olho, talvez tenha sido uma bactéria que apanhei no rio. No dia seguinte tinha planeado ir fazer uma cayoning numa garganta de um rio perto de Misahualli, mas com olho neste estado não arrisco a meter-me dentro de água.
Estou no terminal de autocarros e ainda não decidi para onde vou. Entretanto observo a azáfama do mercado ali ao lado e decido ir até Misahualli. Demoro cerca de meia hora. Esta pequena vila pouco tem para ver, a
única coisa que se destaca são os macacos, que andam por todo o lado. A partir desta vila deixa de se ver estrada, apenas alguns caminhos em muito mau estado. Aqui o principal meio de transporte é o barco. Depois conversar com alguns locais, fico a saber onde existem alguns refúgios de vida animal e algumas aldeias no meio do Amazonas.
Antes de entrar no barco, negoceio o preço com o Lucas. Aqui o rio é já calmo e bastante largo.
Apesar das barcaças serem muito estreitas, são seguras. Lucas vai levar-me até um refúgio de vida animal. Para lá chegar demora-se cerca de uma hora. É um passeio magnífico, a floresta aqui é muito densa, e de vez em quando aparecem algumas clareiras com cabanas e crianças índias a brincar na água. Também daqui se
vêem algumas pessoas em busca de ouro nas margens do rio.
Enquanto Lucas fica à minha espera, vou visitar o refúgio, que se encontra bem dentro da floresta Amazónica. Fazem aqui voluntariado pessoas de todo o mundo. A minha guia é uma americana, que me leva a ver alguns animais recuperados a contrabandistas, animais que viviam em casa de pessoas (mas que depois de crescidos, deixaram de ser bonitos), animais feridos, etc. Muitos destes animais não vão conseguir voltar à vida selvagem, estão demasiadamente domesticados. Como de costume, macacos não faltam e, pela primeira vez, tenho a oportunidade de estar perto de uma gigante anaconda.

Para minha surpresa, encontro aqui o casal de Santander.
Volto para o barco e Lucas vai levar-me até uma pequena aldeia para lá ficar. Continuamos a descer o rio para depois entrarmos num dos seus muitos braços.
O rio mais a jusante não é muito aconselhado. Penetrar na selva e estar praticamente junto da Colômbia e do Peru, traz-me uma certa angústia e faz-me pensar que há muitas probabilidades de poder vir a ter contacto com algumas situações menos agradáveis, nomeadamente a malária, paludismo, piranhas, movimentações das FARC e droga.
As fronteiras entre o Equador, Peru e a Colômbia ainda não estão bem definidas e esta indefinição tem dado origem a alguns conflitos armados. O último foi há cerca de 10 anos. Esta zona da Amazónia é muito rica em petróleo e madeira, e como tal é disputada por estes três países. Os recursos deste “pulmão do mundo” também aqui têm vindo a ser reduzidos, devido à sua exploração intensiva.


Provavelmente a paz só vai regressar a este local quando deixar de haver recursos naturais e depois disso aos líderes destes países não lhes vai interessar mais esta pobre terra, que nunca foi deles mas dos Índios e dos animais que sempre cá viveram e que nunca tiveram fronteiras.
Chego a Ahuano. Aqui recomendam-me a casa da senhora Doña Maruja. Na realidade, o contacto com a família não é muito fácil, falam pouco e são bastante fechados.
Nesta zona do Equador continua a predominar o Quichua. Desta língua tento saber o básico, mas mesmo assim
é muito difícil: Napaykullayki – olá, Allichua – por favor, Yusulipayki – Obrigado, Ari – sim, Mana – não, Mikíut – comida.
O resto da tarde é passado na varanda da modesta casa a olhar para o rio. Desde que cheguei é a primeira vez que páro um pouco. Deixo-me envolver por este lugar tranquilo e o meu cérebro “esvazia-se” completamente com esta paz. Amanhã já tenho de regressar a Quito. Mas enquanto “esvazio” o cérebro, os mosquitos fazem-me um ataque cerrado, e o repelente que supostamente seria “super forte”, mais parece um adoçante para os insectos.
Despeço-me da família e apanho boleia num barco até Misahualli. Aqui apanho o autocarro até Tena, para depois apanhar outro que me levará até Quito.

É uma viagem de cerca cinco horas. Tenho a sorte de ter a companhia de uma simpática senhora, que é funcionária do Estado, e esteve durante alguns dias a fazer uma recolha de dados sobre algumas comunidades indígenas.
A viagem é longa mas a paisagem é deslumbrante. A estrada inicialmente é boa mas a partir de uma certa zona, é só terra. Contudo, a velocidade do autocarro é a mesma. O caminho passa no meio de dois vulcões: o Antisana, 5753 metros, e o Cayambe, 5790 metros. O desnível que o autocarro faz é impressionante, ou seja, sai de Tena a 518 metros, passa num colo a cerca de 3800 metros para depois descer para Quito.
Para o oriente do Equador só existem duas estradas de acesso: a que fiz há alguns dias atrás, e esta. Estas estradas têm alguns postos de controlo devido ao tráfico de animais, droga e
madeira. Como tal, nestes postos todas as pessoas são revistadas.
Estou de novo na confusão de Quito, chego em hora de ponta e andar de autocarro a esta altura do dia é sentir um aperto descomunal. De vez em quando sinto a minha mochila a ser puxada, tento localizar a mão oportunista, mas não consigo. Acho melhor andar com os bastões e a picareta do gelo na mão para dissuadir eventuais carteiristas.
Como tenho algumas horas ainda, vou fazer um passeio ao mercado de artesanato para gastar os últimos dólares.
No caminho para o aeroporto apanho um táxi, com um condutor de cerca 50 anos totalmente alucinado. Com a boina de lado, metia frequentemente a cabeça de fora do carro a chamar a quem lhe impedisse a progressão todo o tipo de impropérios


Esta viagem é um pequeno relato da minha experiência no Equador. No entanto não relata as cores, os cheiros, as expressões, as alegrias, as tristezas, a paz, enfim quase todos os sentimentos. Esses deixo-os para os que lerem esta crónica possam imaginar, sonhar e viajar.

Curiosidades.

· Durante todas as escalas tive apenas um atraso de quinze minutos em Caracas.
· Dentro do Aeroporto de Caracas, a temperatura era de cerca de 16 graus, no exterior a temperatura era de cerca de 30 graus com uma humidade de quase 100%. Sendo a Venezuela um local predilecto para os veraneantes de chinelos e calções, era vê-los todos encolhidos e desejosos de saírem dali.
· Quem diz que os alentejanos são lentos é porque não conhece os funcionários do aeroporto de Caracas. Antes de mexerem uma mão têm de pedir licença à outra
· De todos os viajantes com quem falei, a opinião foi unânime: os equatorianos são os piores condutores.
· Para contrapôr, só ouvi uma vez uma sirene de uma ambulância em Quito, provavelmente até são bons condutores mas não deixam de ser
malucos e de terem tendências suicidas.
· No Equador, à mesa servem-se primeiro os homens. Fez-se justiça (sei que vou ouvir por fazer este comentário)!
· Frase mais escutada no Equador: “No Equador tudo é possível”.
· O custo dos transportes é em média de 1 dólar por hora.
· Custa também um dólar lavar 1kg de roupa nas lavandarias. Quase que compensa enviar por correio expresso a roupa para o Equador para ser lavada.
· Fui revistado sete vezes: seis nos aeroportos e uma num autocarro, no meio da floresta no Equador.
· Para não remexerem muito a mala, deixei a roupa muito fedorenta e suja na parte de cima da mochila. Resulta!
· A pasta de dentes, o champô e os sabonetes para a roupa e corpo acabaram na noite anterior ao meu regresso.
· Quando entrei no aeroporto de Quito para regressar, restavam-me apenas 15 cêntimos nos bolsos.
· No regresso, muito surpreendentemente, estive apenas cinco minutos à espera da minha mala no aeroporto da Portela. Deve ter sido batido o recorde de rapidez no nosso aeroporto!


Para finalizar, um espectáculo, que eu não contava e que seguramente não voltarei a ter oportunidade de ver tão cedo: o nascer do Sol, quando o avião se preparava para aterrar em Lisboa.
É bom voltar a casa....
.